No vídeo abaixo, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR-STM), Manoel Edivaldo Santos Matos, o Peixe, explica, a partir de um mapa da região do Tapajós, o cerco do capital à Amazônia:
De um lado, ampliou-se a área portuária, convenientemente envolvendo toda região do Lago Maicá, onde há planos para a construção de cinco portos privados voltados ao escoamento da soja. De outro, cresceu a zona urbana, o que permite a construção de prédios e empreendimentos turísticos à beira do Rio Tapajós. Isso envolve toda a área em direção a Alter do Chão, considerada uma das praias mais bonitas do Brasil e que foi foco das queimadas em 2019. Ora, nada é por acaso, e o ciclo se repete: queimadas, grilagem, venda ilegal da terra – seja para a expansão do agronegócio, seja para a venda de lotes para indivíduos ou para empreendimentos turísticos. De toda forma, significa violência contra os povos e comunidades locais e a derrubada da floresta.
Fecha-se o cerco: madeireiros ilegais; grilagem; soja; agrotóxicos; pecuária; portos; mineração; ferrovias; contaminação do solo e das águas; especulação imobiliária; expulsão de famílias quilombolas, indígenas e de pequenas e pequenos agricultores para as periferias da cidade; ameaças e ataques a quem resiste. Repetimos: não há convivência possível com o ciclo de morte do capital.
– Visagem? Não tem aparecido visagem na mata, não, moça; é na água, e a visagem toma outras formas, dá sempre jeito de assustar. (Visagem significa, em vocabulário local, “assombração”). Na região do Maicá, sudeste de Santarém, a visagem tem tomado formas bastante concretas, todo mundo vê e se preocupa: é a forma de um porto.
A Embraps (Empresa Brasileira de Portos de Santarém) pretende instalar um porto na Boca do Maicá, entrada do rio que se estica por um braço a partir do Rio Amazonas, retornando ao mesmo rio para então seguir seu fluxo em direção a Macapá (AP) e ao Oceano Atlântico. Suas águas têm rica biodiversidade e banham cerca de 50 comunidades, todas postas em risco caso o projeto do porto avance.
Essa história faz parte da reportagem “A história do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos:
Pois então não é visagem: é a realidade que assombra; e é entre contações de histórias e risadas que Narivaldo dos Santos fala do Estudo de Impacto Ambiental da Embraps – Sabe, eu pesco aqui pirarucu, tambaqui, surubim, pacu, acará, pescada, aracu, carauaci, arauanã, acari, fura-calça, mapará, que é branquinho né… e tem bem mais, porque quando eu falo em acará, tem umas oito espécies só aqui na nossa região: o roxo, o bararuá, o boca-de-pote, o escama-grossa, o tinga, o açu… O tucunaré também: tem o açu, o pinima e o comum, e o surubi cabeça-chata, pinima e pintado e assim por diante. É tanto que a gente pode dizer – Hoje eu não quero esse, aí solta e pega o próximo, é um cardápio rico. Aí no estudo da empresa aparece quase nada de tipos de peixes, e nem de pássaros, jacarés, capivaras, tatus, nem o peixe-boi, que tá em extinção e a gente acha aqui no nosso rio... É, talvez os pesquisadores da Embraps não saibam pescar.
Narivaldo é líder da comunidade quilombola de Bom Jardim, tem 42 anos e não parece: corre rápido pelos troncos de palmeira caídos que servem como caminho até a área onde descansam as canoas e embarcações da comunidade pesqueira – das cerca de 120 famílias, pelo menos 90 pescam no Maicá, algumas para o comércio, outras apenas para a subsistência. Com os passos ágeis, ele faz parecer fácil o que definitivamente não é: mas embora tortuoso, as toras são ainda um caminho, e após cerca de dez minutos de frágil equilíbrio sobre as madeiras chegamos a uma bonita enseada, onde a grama verde encontra as calmas águas do rio, e ali agitam-se com leveza as canoas. A remo, o centro de Santarém está horas distante.
Vez que outra um peixe se aventura num salto, como que a exibir a riqueza do rio – Não precisa nem ir longe pra achar mais que dois tipo de peixe, ri de novo o Narivaldo, antes de voltar a falar sério – Do governo a gente percebe que não estão nem aí pra Amazônia, pros nossos rios. De certa forma, já foi dada a ordem para a construção do porto. Só parou pela ação da FOQS [Federação das Organizações Quilombolas de Santarém], que protocolou o pedido pela consulta prévia junto ao MPF [Ministério Público Federal]. Se depender do governo o porto sai, as comunidades quilombolas querendo ou não: mas o que a gente puder fazer para evitar, vamos fazer. Eles dizem que os impactos podem ser compensados, mas isso não existe: a gente quer viver como vivemos hoje.
A instalação de um porto no Maicá (não só um: existem projetos para cinco portos no rio) vai significar a destruição daquele modo de vida e é um ataque direto às 12 comunidades quilombolas do entorno, a do Bom Jardim entre elas. Em testamento, os antigos donos de escravizados da fazenda local, que não tinham herdeiros, deixaram a terra para as seis famílias que eram exploradas ali. Isso há 142 anos: são quase dois séculos de pertencimento e luta naquele espaço. Agora, em nome do lucro de poucos, tudo pode desaparecer.
Consulta prévia e a Convenção 169 da OIT Contudo, a mobilização popular e jurídica, com o apoio da Terra de Direitos, surtiu efeito e o licenciamento do projeto foi suspenso. A empresa deverá realizar consulta prévia, livre e informada a todas as comunidades atingidas – quilombos, indígenas e pescadores -, em acordo com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Os estudos da Embraps eram tão rasos que sequer consideravam o componente quilombola, tão relevante naquela área, o que também deverá ser acrescentado em um novo estudo a ser apresentado pela empresa. Embora não tenha poder de veto, a obrigatoriedade da consulta às comunidades atingidas pode ser considerada uma vitória: após a decisão judicial favorável, as 12 comunidades organizadas na FOQS apressaram-se para construir seu próprio Protocolo de Consulta, o que também foi feito pelas comunidades indígenas e pesqueiras impactadas.
A suspensão do licenciamento também atrasa o cronograma do projeto, que é de alto impacto, permitindo maior tempo para a disseminação de informação na região. A previsão da Embraps era de que, somente no primeiro ano de funcionamento, 4,8 milhões de toneladas de grãos de soja poderiam ser exportadas pelo porto instalado no Maicá, grande parte vinda da região Centro-Oeste do Brasil por meio da BR-163. Vejam que também a infraestrutura de escoamento causa impactos aos territórios: caso semelhante ao da rodovia BR-163 é o da Ferrogrão, projeto de ferrovia que ligará a cidade de Sinop (MT) até Itaituba (PA) e que também causará danos ao longo de seu trajeto, em especial em unidades de conservação e em terras indígenas.
Um porto onde não pode haver porto Um fato estranho, porém: no mesmo local onde seria instalado o porto da Embraps, um outro empreendimento surgiu – um posto de combustível para embarcações, à revelia de estudos de impacto ou da participação da comunidade. A empresa responsável é a Atem’s, distribuidora de petróleo que opera no Norte do país. Os danos já são sentidos, em especial na pesca, com o derramamento de combustível e o aterramento da área, que mudaram o fluxo de correntes d’água e de peixes. Em março deste ano, o Ministério Público paraense denunciou a empresa, seu sócio administrador e o engenheiro responsável pelo projeto pela prática de crimes ambientais. Para o órgão, a obra avançava sem a licença do órgão ambiental competente, além de ter sido apresentado um licenciamento divergente à Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Pará, que se referia a cargas não perigosas – quando era sabido, desde o princípio, o objetivo de construção e instalação portuária para distribuição de combustível (carga perigosa).
Em resumo, esse é o desenho do cerco do agronegócio aos territórios: expulsão de famílias de suas terras para o plantio da soja, contaminação das terras vizinhas pelo uso do agrotóxico, o transporte dos grãos rasgando territórios – seja via caminhão ou via trem -, sua chegada em portos que destroem os modos de vida tradicionais das redondezas, a exportação para que gere riquezas ao capital internacional. Para resistir a essa engrenagem, é necessária muita união e força. O andamento do projeto da Embraps representa ainda a remoção de famílias e a demolição de casas para a ampliação de vias, a chegada de centenas de trabalhadores de outros estados, uma mudança completa no cotidiano da região: a estimativa é que cerca de 900 carretas diárias passem pelas ruas do bairro Pérola do Maicá no percurso até o porto.
A luta contra a Embraps se dá desde 2013 (nessa linha do tempo, organizada pela Terra de Direitos, veja a cronologia das resistências à construção de portos no Maicá). São ao todo cinco portos planejados para a região, de três empresas – todos voltados para a exportação de grãos e commodities, em especial a soja. Além da Embraps, a construção de outros portos visa favorecer as atividades do Grupo Cevital, da Argélia, que atua no ramo agroalimentar e está envolvido com plantações da região Centro-Oeste do Brasil, e a empresa Ceagro.
Ninguém sabe ao certo: se sai, se fica, pra onde vai se sair, como fica se ficar. É uma tremenda insegurança e, de repente, toda essa terra na qual vivem começa a ter “donos” – donos que não são eles que vivem lá: alguém paga um IPTU como forma de reivindicar aquele espaço e aí crescem as ameaças, ouve-se nas esquinas – Quilombola é ladrão de terra, e vejam só que inversão, que quem chegou ali primeiro foram os negros, assim como foram os indígenas em outros locais, e é sempre assim: o invasor é outro.
Essa é uma das histórias da reportagem “História do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos:
Hoje, no Pérola do Maicá, bairro onde será instalado o porto da Embraps, vive-se com medo. E tem que se estar sempre atento, em especial em um momento político em que um presidente da República é abertamente racista – já nem se importam em esconder, e mesmo quem tem o dever institucional de defender os direitos da população negra afirma absurdos como – O Brasil tem racismo Nutella. Racismo real existe nos EUA. A negrada daqui reclama porque é imbecil e desinformada pela esquerda. São mesmo tempos estranhos, e talvez o porto da Embraps, e os outros na região do Maicá, nem saia: mas os danos que ele traz chegaram com bastante antecedência, estão aí, e a Lídia de Matos Amaral, 38 anos, da comunidade quilombola do Pérola do Maicá, é que nos conta:
ela esteve já em regiões onde foram construídos portos. Histórias bem semelhantes a que ela e suas companheiras e companheiros de quilombo e vizinhas e vizinhos de bairro vivem hoje – É muito complicado. A violência vai triplicar, vai modificar todo o estilo de vida tranquilo que temos aqui, isso vai acabar. E falam em compensações: os empresários pensam que a tudo o dinheiro pode comprar, mas como compensar um modo de vida destruído?, uma tradição esquecida?, uma conexão com o território desfeita? Mesmo o pouco que prometem, os supostos desenvolvimento e progresso, postos de trabalho, mesmo isso não é verdade, porque olha quantos megaempreendimentos já destruíram comunidades Brasil afora e seguimos sem desenvolver, não progredimos – Olha o porto da Cargill: me diz quantos santarenos trabalham lá?, e talvez este outro porto, o da Cargill, instalado de maneira irregular sem respeitar os processos de licenciamento, sem se importar com a comunidade local, e que destruiu a Praia de Vera-Paz, antigo ponto turístico e área de lazer em Santarém, talvez ele devesse servir de exemplo (para lembrar as irregularidades da Cargill: aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui): porque é assim que é, e não como as falsas promessas dos empresários e dos governos dizem, é ilusão. O que há de concreto é a destruição – Pra gente fica o prejuízo, bem sabe a Lígia, que já viu em outros lugares, e está ali o porto da Cargill para nos lembrar como o capitalismo de fato se “desenvolve”.
Quem sabe disso também é a Valda
[e não à toa outra mulher, a Lígia bem sabe disso também – As mulheres estão na linha de frente, dão a cara a tapa e sofrem muitas represálias. Por isso temos que nos fortalecer, e é uma defesa do território que é uma defesa do corpo e do corpo dos outros também, das filhas e dos filhos, é uma conexão profunda, axé – E muitas mulheres que eu conheci já não estão aqui hoje, eles dão o recado deles [é o patriarcado] – Mas eles tiram uma e nascem cinco, ainda mais fortes, e que dão sequência a essa luta cruel e desigual.]
A Valda é a Valdeci Oliveira Sousa, de 52 anos. Ela faz parte da CPP (Comissão Pastoral dos Pescadores) e é presidenta da associação de moradores do Pérola do Maicá. Ela também já sente os impactos do porto da Embraps – Há cinco anos sentimos esse impacto, desde que soubemos da existência do projeto: tudo mudou, desde o mais básico, como a convivência entre vizinhos – aumentaram os conflitos, agora há desconfiança entre as lideranças, quebrou-se a harmonia. De repente, nasceram novas organizações de bairro – há sempre quem se encante pelas falsas promessas de dinheiro e “desenvolvimento” -, feitas para facilitar a entrada do projeto, o veneno escorrendo pelas artérias do bairro, pelas pequenas ruas de barro, que serão ampliadas e passarão por cima das casas caso o porto vá de fato adiante, e famílias terão que ser removidas, no bairro e no quilombo, e ninguém sabe pra onde.
Além disso, políticas públicas para o bairro passaram a ser travadas: há anos o local vem sendo esquecido, num lento e doloroso processo de expulsão – Eles precisam que a gente queira sair daqui, então não se tem mais infraestrutura viária, nenhum investimento, tivemos muita dificuldade no último inverno [que é a época de chuvas, dezembro, janeiro, fevereiro, quando é verão na maior parte do Brasil], as ruas ficam com muitos buracos e a linha de ônibus teve horários reduzidos, é esse o recado – Não querem sair? Vão sofrer.
Andando pela região, Francinaldo Miranda, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR-STM), ensina a engenhosa arquitetura dos sojeiros, ou talvez a habilidade em design de ambientes – Esse é o puxadinho, que se resume a um pequeno avanço, não mais que dois ou três metros, do campo de soja em direção à mata em pé; queima-se aos poucos a floresta e, ano a ano, como se nada estivesse acontecendo, a soja toma todo o espaço disponível – como se precisasse crescer mais: pode se dizer, hoje, que no meio do campo de soja havia uma floresta (e havia uma floresta no meio do campo de soja) – E eles constroem esse muro pra que a visão da estrada seja bloqueada. Ninguém vê nada e parece estar tudo bem com a floresta. O muro em questão é uma fina faixa de árvores que, de fato, cumpre seu papel: é só ao dar a volta nela que se pode contemplar a imensidão da soja, soja a se perder de vista, de um lado, do outro lado, adiante e atrás. Porém, da estrada, é como se as árvores seguissem em pé, altivas.
Essa é uma das histórias da reportagem “História do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos já publicados:
Os impactos na floresta e nas comunidades locais, obviamente, são tremendos: a soja representa grilagem, queimadas, desmatamento, agrotóxicos, além de necessitar de toda uma infraestrutura para seu transporte e exportação, o que também impacta os povos da região. Alguns casos, porém, beiram o absurdo: como a situação de uma pequena escola na comunidade de Boa Sorte (e o nome parece uma sádica ironia da vida). Ali, a distância entre a janela da sala de aula e o campo de soja não chega a dois metros, e o mais grave: o uso de agrotóxicos não respeita o horário escolar e se repete várias vezes ao ano. A contaminação das crianças é direta e repetida.
A região de Curuaúna é tão impactada pelo uso de agrotóxicos da soja (o principal é o glifosato – o Round-Up da Monsanto) que estudos com coleta de sangue de moradoras e moradores estão sendo realizados para dimensionar o tamanho do dano à saúde das pessoas. Os resultados dessa pesquisa ainda não foram divulgados. Outros estudos, entretanto, estão disponíveis: é o caso da dissertação de Nayara Luiz Pires, da Universidade de Brasília, que em 2015 pesquisou a expansão da fronteira agrícola na Amazônia e a contaminação por glifosato na região de Santarém. Nela, a pesquisadora afirma “um provável risco de exposição humana a agrotóxicos, principalmente pela via respiratória”.
Fugindo da soja: cidades-fantasma e abandono Muitas famílias, claro, não esperam para descobrir o quanto os agrotóxicos são danosos e a que velocidade estão os matando. Assim, as comunidades vão aos poucos sendo abandonadas, sumindo do mapa, deixando de existir – Ali era um campo de futebol, – Ali tinha um monte de casas, – Aqui era uma escola, mostra Francinaldo conforme se avança pela estrada que corta os campos de soja.
Mesmo as tradicionais partidas de futebol entre as comunidades vizinhas correm o risco de deixar de acontecer, simplesmente porque cidades-fantasma não têm times de futebol: ninguém mais poderá desafiar o temido São Jorge, equipe a ser batida na região. Francinaldo, natural da área de Curuaúna, era goleiro e conta quando – O centroavante tava a poucos metros de mim e era daqueles que chutava forte, meu amigo até, mas chutou com raiva, e a bola foi tão forte, mas tão forte, que rasgou a barriga de Francinaldo, e isso ele só descobriu mais tarde, depois do jogo, pois se arrastou com a bicicleta até em casa para não acusar a dor na frente do adversário. Precisou até de cirurgia e demorou anos a se recuperar plenamente. O mais importante, porém, conseguiu: defendeu o chute.
Isso que significa o avanço da soja: além da morte e da contaminação e da grilagem de terras, o fim da cultura e da vida local.
Os olhos apontaram certeiros para a estampa na camiseta e ali se perderam, demorando a voltar – É a Maria do Espírito Santo? É ela, não é?, e a resposta foi que sim.
Quem indagava sobre a imagem que aparecia na camiseta de um dos presentes à celebração dos 46 anos do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR-STM) era Maria Ivete Bastos dos Santos, 52 anos – sete deles dedicados à presidência da organização, entre 2002 e 2008. Chico Mendes, Marielle Franco, Irmã Dorothy, Berta Cáceres, entre outras e outros, também a encaravam desde o tecido branco da camiseta, retribuindo o olhar sério. A estampa, Maria Ivete soube em seguida, era uma homenagem às defensoras e defensores de territórios assassinados no Brasil e na América Latina nas últimas décadas, além de um protesto pela ausência de soluções para esses crimes.
A voz tremeu por um segundo antes de voltar à firmeza habitual: ver ali o rosto da amiga Maria do Espírito Santo pegou a outra Maria, a Ivete, desprevenida – Não esperava ver isso hoje, e a partir daí ela lembrou: e a lembrança às vezes é um fardo pesado, dói.
Essa é uma das histórias da reportagem “História do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos:
No estado do Pará, dos mais perigosos para quem defende os direitos dos povos, as duas lutaram lado a lado. Maria Ivete, presidenta do STTR-STM, além de outros cargos que desempenhou no sindicato ao longo dos anos; e Maria do Espírito Santo que, junto a seu esposo Zé Cláudio, trabalhava e vivia no Assentamento Agroextrativista Praia Alta Pirandeira, em Nova Ipixuna, região de Marabá. Por enfrentarem madeireiros ilegais e ruralistas da região, o casal recebia constantes ameaças. Zé Cláudio sabia já do seu destino, que ia morrer, e contou isso ao mundo sem que o esforço fizesse maior diferença: ambos foram assassinados ao serem emboscados por pistoleiros dentro da reserva na qual trabalharam e preservaram por 24 anos.
A covarde emboscada ocorreu em 2011. De lá pra cá, são nove anos de lamentação para Maria Ivete – Eu disse pra ela não pegar a moto naquele dia, embora a Maria Ivete saiba ser esse um mero detalhe – Não é ameaça o que a gente sofre: é sentença, e é quase como se fosse questão de tempo até que a morte encomendada encontre a encomenda. No entremeio, a ameaça é uma espécie de antecipação da morte à vida, uma absurda inversão na ordem natural das coisas. A sentença que paira sobre tantas cabeças impede que a vida seja vivida plenamente, por mais que, a rigor, se esteja vivo, e o coração ainda bata e ainda se respire e o cérebro ainda lembre, a duras custas.
Como o caso tomou grandes proporções e teve repercussão internacional, os dois pistoleiros que assassinaram Maria do Espírito Santo e Zé Cláudio foram condenados pela Justiça; o mandante do crime, após ser absolvido em 2013, foi a novo julgamento três anos depois e declarado culpado. A pena: 60 anos de prisão. Entretanto, apenas um dos atiradores está na cadeia. José Rodrigues Moreira (o mandante) e o irmão, Lindonjohnson Silva Rocha (executor), estão foragidos desde novembro de 2015– Não sei falar de justiça, então eu falo é de injustiça, e essa é a referência, afinal: a injustiça é o que se conhece e se experiencia, restando ao seu oposto – à justiça – algum lugar no horizonte, distante e irreal.
Proteção a defensoras e defensores dos direitos dos povos ainda é insuficiente Somente no Pará – e ainda em 2017 -, 90 pessoas estavam em lista para ingresso no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) – o estado é o terceiro com maior número de pessoas dentro do programa. Para Maria Ivete, já são cerca de dez anos convivendo com escoltas, restrições de horários e de movimentos: hoje, ela é acompanhada pelo Programa Estadual de Proteção a Defensores de Direitos Humanos no Pará, que acompanha 77 pessoas no estado. Não é segurança o que ela sente, pelo contrário: conviver com a proteção é lembrar diariamente da ameaça – Não vou em festas, nos lugares que a gente vai a gente não sai pra ir na esquina, num barzinho, nada.
O PPDDH, embora um avanço importante (surgiu como reação ao assassinato da irmã Dorothy Stang, também no Pará, em 2005), ainda é bastante precário. Ele precisa de articulação nos estados; contudo, tem programas implantados por meio de convênios em apenas seis — Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará, Minas Gerais e Maranhão. No Pará, a operacionalização se dá por meio de uma central em Brasília.
A principal questão, entretanto, é outra: o programa se mostra útil quando a situação já é extrema, em casos de perseguição e ataques. Imagina-se que a vigilância por parte do Estado possa em um mínimo constranger o trabalho dos assassinos. Contudo, acabar com os ataques às defensoras e defensores dos direitos dos povos exige uma resposta estrutural: regularização fundiária das pequenas e pequenos agricultores, demarcação de terras indígenas e das comunidades tradicionais. Em suas recomendações ao Estado brasileiro, o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores dos Direitos Humanos fala em “políticas de garantia do direito a terra e território”, que incluem o respeito a convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho); a garantia da participação das comunidades nos processos de licenciamento de grandes projetos; a demarcação de terras indígenas e quilombolas; a reestruturação do Incra e da Funai, para melhor atendimento à população; o avanço da reforma agrária.
Assim, com medidas estruturais de defesa dos territórios, que menos rostos estamparão camisetas em homenagens tardias a quem perdeu a vida em nome dos direitos dos povos.
Vruuuum vruuum vruuuuuum e o barulho fez despertar José Marques da Costa, trabalhador rural de Alenquer, pequeno município do Pará com pouco mais de 50 mil habitantes. Dos 53 anos que José carrega nas costas, boa parte deles foram de noites mal dormidas: assim são as noites em muitos recantos do Brasil para aqueles que ousam defender os direitos de quem trabalha na terra – exatamente o que ele faz, e quando ouviu o quarto vruuum José Marques se pôs em pé, alerta.
Essa é uma das histórias da reportagem “A história do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos:
Poucos meses antes, novas mensagens haviam chegado até ele (sempre de maneira indireta, aviso acovardado, “manda dizer”) – Vamos matar uns cinco, nem vão saber e – A Justiça é lenta, na bala a gente resolve mais rápido, e se antes José dormia com um olho aberto, passou a abrir os dois em noites de pouco ou nenhum descanso. E se a televisão parecia bom remédio para trazer o sono, o que ocorria na verdade era o oposto: a voz arrastada do atual presidente da República, Jair Bolsonaro, ecoava do aparelho e apenas agravava a insônia ao dizer coisas como – Quem tinha que estar preso era o pessoal do MST, gente canalha e vagabunda. Os policiais reagiram para não morrer, e – Vamos fuzilar a petralhada do Acre, hein!, discursos de ódio que incentivam e materializam a violência contra trabalhadoras e trabalhadores rurais na Região Amazônica e no Brasil – ou seja, contra ele, José. A primeira fala de Bolsonaro faz referência ao Massacre de Carajás, quando policiais militares do Pará assassinaram a sangue frio 19 trabalhadores sem terra; a segunda foi feita durante a campanha presidencial de 2018.
Vruuuum vruum seguia o barulho, e José Marques arriscou espiar a rua.
Motos. Muitas motos – Uma, duas, três, meia dúzia, nove, dez, ia contando ele, mas a tarefa era dificultada pelo constante movimento circular dos veículos, que aceleravam e desaceleravam em frente à casa. Umas vinte, devia ser algo em torno disso, e logo José passou a se concentrar não nas motos, mas em quem as pilotava: essa era certamente questão de maior importância. Foi aí que viu vizinhos, amigos, colegas, e o medo que havia se instalado no peito cedeu um pequeno espaço para a curiosidade – O que fazem aqui a essa hora? e, em seguida, para a comoção: o circo ali montado não era uma emboscada. Pelo contrário: era uma escolta para protegê-lo exatamente de um ataque e possível assassinato.
Desde o fim do dia corria pela pequena cidade o boato de que pistoleiros – Todos muito traiçoeiros, ainda tomam um café na tua casa antes de te matar, esses traiçoeiros pistoleiros estavam à espreita na estrada, prontos para atacar José Marques quando ele saísse de casa. Morte encomendada pelos grandes fazendeiros da região. As vinte e tantas motos serviriam – e serviram de fato – de escudo para levar José Marques até algum lugar seguro. Assim foi que ele subiu em sua moto, em meio à noite da pequena Alenquer, arrancou e viveu para lutar mais um dia entre e pelos seus.
Grilagem: CAR sobreposto e “Quatro Anos de Tormenta” O que levou pistoleiros a perseguirem José Marques tem relação com o cargo de nome comprido que ele carrega: presidente da Associação Comunitária de Moradores e Pequenos Agricultores da Comunidade de Limão Grande, localizada em Alenquer. Ali viviam e trabalhavam 86 famílias em uma área de cerca de dez mil hectares – até que, em 2016, começou o que José chama de “Quatro Anos de Tormenta”.
Primeiro, houve a requisição, por parte de fazendeiros, de três mil hectares da área onde viviam as famílias. Em consulta ao Incra, com o apoio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Alenquer (STTR-ALQ), viu-se que o pedido era justo: as famílias aceitaram se retirar daquela área, redistribuindo-se irmãmente nos sete mil hectares restantes. Nesse meio tempo, foi realizado um georreferenciamento do terreno, passo necessário para que a comunidade fizesse seu cadastro no CAR (Cadastro Ambiental Rural).
Trabalho feito, voltaram ao Incra e aí a surpresa: quinze dias antes, diversas pessoas haviam cadastrado aquelas áreas como suas. De repente, a terra onde as famílias viviam desde 2007 tinha “donos” – e eram outros. Nunca houve fiscalização por parte do Incra para verificar se aqueles que fizeram o CAR de fato ocupavam a terra autodeclarada; houvesse uma, seria simples constatar quem de fato ocupa a área – Eles não sabem nem onde fica, contudo José sabe e isso parece de nada adiantar.
O cadastro, feito a partir das informações prestadas pelo requerente, não tem prazo para verificação pelo órgão público competente: alguns estados afirmam que a análise dos cadastros demoraria entre 25 e 100 anos. Entretanto, contrariando o imaginário popular de morosidade da Justiça e do poder público, antes que a devida vistoria pudesse ocorrer, foi decretada a reintegração de posse do local, o que aconteceu com forte aparato policial. Resumo: 86 famílias foram postas na rua, com requintes de crueldade. Tudo o que tinham ficou para trás – carroças, plantações, casas -, e o que ficou para trás foi incendiado e posto abaixo.
Os vídeos acima foram gravados pelas produtoras e produtores locais. O primeiro deles mostra o fogo consumindo uma construção ao lado de uma plantação; o segundo mostra as ruínas que restaram; o último vídeo denuncia a destruição da única ponte de acesso à área, serviço executado pelos capangas dos grileiros. Na foto, também disponibilizada por moradoras e moradores de Limão Grande, seguranças privados fortemente armados proíbem a circulação dos trabalhadores rurais no território em disputa.
Hoje, seguranças privados rondam o território. As espingardas falam alto e quem se aventura a buscar algo que talvez tenha restado em pé (e às vezes o desespero é afeito a aventuras) corre grave risco de ser atacado pelos capangas dos grileiros. E é isso o que houve: grilagem a partir da sobreposição de terras no CAR, que é autodeclarado. Diferentes CPFs se intitularam donos de uma área que não ocupam, antecipando-se aos verdadeiros ocupantes que preparavam os trâmites para se cadastrar no sistema. Sem vistoria alguma, a Justiça determinou a reintegração de posse em nome dos interesses dos grileiros.
Um detalhe chama atenção e evidencia a intenção de tomada total do território dos trabalhadores rurais: ao realizarem o CAR em diversos CPFs laranjas, uma área de quase 600 hectares não foi sobreposta – seria, portanto, direito das famílias permanecerem ali. No momento da reintegração de posse, porém, toda a área foi despejada, não restando nada nem ninguém para trás — Não houve qualquer respeito ao protocolo de remoções, reclama José, mas na terra em que a posse da terra é de quem não vive nem trabalha nela, espera-se quase nada de uma Justiça e de uma polícia a serviço dos grandes fazendeiros.
Desigualdade agrária e violência no campo Os números da desigualdade agrária no Brasil são alarmantes: quase metade da área rural do país pertence a apenas 1% dos latifundiários. Dados do Censo Agropecuário de 2017 mostram que os grandes estabelecimentos rurais elevaram a concentração de terras para 47,5%, enquanto as pequenas e pequenos agricultores, cujas propriedades têm até 10 hectares de terra e representam metade das fazendas do país, ocupavam apenas 2,2% do território produtivo.
Tal desigualdade na distribuição de terras, além de ressaltar a urgência de uma reforma agrária, gera violência: os conflitos por terra mataram 2.262 pessoas entre 1964 e 2010 no Brasil. Só em 2017, foram 70 assassinatos, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Ora, e tente adivinhar quem morre nesses conflitos? Sempre os pequenos: o Brasil está no topo de lista de países onde mais se mata defensoras e defensores dos direitos dos povos sobre seus territórios, divulgada em 2016 pela ONG Global Witness. E são exatamente essas pequenas e pequenos agricultores, perseguidos por defenderem seus territórios, que produzem mais de 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, já que as grandes monoculturas exportam a maior parte da sua produção. Porém, o governo Bolsonaro escolhe privilegiar os interesses dos ruralistas, intensificando os ataques aos povos originários e tentando legalizar a grilagem com o PL 2633, o famigerado PL da Grilagem.
O trajeto era longo, entre Santarém e Alenquer são duas horas de balsa e mais três ou quatro horas de estrada, parte em asfalto, parte em terra, então o Totó, homem silencioso, e a Mara, mulher falante, aproveitaram para contar algumas histórias que presenciaram, ele como ex-presidente e hoje vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Alenquer (STTR-ALQ), ela como a atual presidenta da organização. Em todos os relatos, destaca-se a importância do sindicato para a conquista e garantia de direitos, para serviços de assistência técnica e para a segurança das e dos trabalhadores rurais.
Essa é a última história da reportagem “História do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos já publicados:
Alenquer é pequena, pouco mais de 50 mil habitantes. E é instável: prefeitos não tem o hábito de completar seus mandatos, já se tornou tradição. Naquele dia mesmo, enquanto Totó e Mara contavam histórias, o presidente da Câmara de Vereadores assumia o cargo de prefeito, em mais uma reviravolta da política local. Pois em determinado momento, anos atrás, indignados com a ausência de políticas públicas na região…
Uma pausa: Totó, que se chama João Gomes da Costa e tem 47 anos, olha o retrovisor e vê uma grande caminhonete branca ultrapassar. Já à frente do carro, ela passa a andar lentamente. Em seguida, acelera bruscamente e desaparece no horizonte. Mara, abreviação de Aldemara Ferreira de Jesus, 37 anos, percebe que a placa era de Santarém.
…indignados com a ausência de políticas públicas; com os salários atrasados das professoras e professores e dos profissionais da saúde; com a péssima condição das estradas; enfim, um pacote completo de indignações: aí que o povo resolveu trancar a estrada que dá acesso à cidade. Isso porque, antes, o prefeito se recusou em diversas ocasiões a dialogar – chegou a expulsar Totó e Mara de reuniões – e levou seu desinteresse a ponto de a estrada ter que ser trancada.
Uma multidão de trabalhadoras e trabalhadores de diferentes áreas se aglomerou no local – estavam ali trabalhadoras e trabalhadores rurais, organizadas pelo sindicato, e também a classe de professores e da saúde, e os garis, e o pessoal da paróquia, era todo mundo mesmo – e aí rapidinho apareceu o prefeito e secretários e juiz e desembargador e ficou combinada uma reunião na Câmara de Vereadores mais tarde naquele dia. Combinou-se que apenas 50 representantes da sociedade civil poderiam entrar e apresentar suas demandas. Ok.
Só que antes dos 50 chegarem chegou o “tático” da polícia, um grande exagero, e foi aquele constrangimento quando até as irmãs e os padres foram revistados pra entrar no local da reunião. Ali, o povo falou e, imediatamente depois, sem qualquer resposta ou manifestação ou uma mínima indicação de que prestou atenção, o prefeito se retirou.
Mara e Totó foram até a frente da Câmara de Vereadores contar o que havia ocorrido e se surpreenderam com a massa de gente que esperava o resultado da conversa, mais de mil pessoas que obviamente não se alegraram com a notícia: uma chuva de ovos e tomates caiu sobre as paredes e em escudos da polícia. De um canto, um grito desesperado – Totó, controla o povo, ao que ele, Totó, pensou – Como? mas respondeu – Se tem alguém descumprindo algo aqui são vocês, se comprometeram a dialogar e não dialogaram, e seguiam voando e zunindo e explodindo no prédio ovos e tomates, a multidão aumentando o tom, até que reaparecem o prefeito e os secretários, dessa vez todos muito dispostos a escutar. Retomada a reunião, finalmente acordos são feitos e compromissos, firmados. Mara ri – Se os trabalhadores unidos entendessem a força que têm… Não tomavam desaforo de ninguém.
Perseguição e ameaças – Se posicionar do lado dos pobres tem uma consequência, diz o Totó, e ele bem sabe: preocupa-se com as ameaças que recebe, preocupa-se por ele e pela filha e pelo filho, e demorou alguns segundos até ele conseguir dizer – Eu tenho medo sim, a gente perde a liberdade. Penso nos horários, os meus e dos meus filhos, fico atento a qualquer coisa que esteja diferente, penso em como vai ser a chegada em casa, se tem alguma emboscada. Mas o sono é tranquilo, ele garante – A gente tem a consciência tranquila, embora sempre atenta e preocupada.
Preocupação que Mara compartilha, como quando sua filha pergunta – Mãe, o que é isso que estão falando de você no Facebook?, e até explicar a uma criança o que se passa é complicado, é complexo, é desgastante e é grave: é grave porque por vezes as ameaças vêm do próprio Estado, representado nos homens de farda que deveriam dar proteção a todos. Totó relata receber ligações com ameaças de policiais – Estamos com o fazendeiro tal, dizem na intenção de intimidá-lo. A mensagem é clara e – Ali onde você acharia alguma proteção você não tem nenhuma. Ele reclama e reza, confia em Deus: e para alguns, frente à negligência do Estado, resta apenas a proteção divina mesmo – útil quando somada à união e à força das e dos trabalhadores.