Estamos acompanhando as informações acerca das comunidades indígenas, quilombolas e de pesca artesanal que, como toda a população, enfrentam os impactos decorrentes deste último evento climático que bateu recordes no Rio Grande do Sul.
Ontem terminamos um mapeamento das comunidades indígenas que estão sendo mais impactadas pelas águas e identificando os casos mais graves, para posteriormente pensarmos em ações conjuntas de apoio e solidariedade, e subsidiar a tomada de ações pelo Poder Público.
De todas as comunidades indígenas, destacamos três casos Guarani emergenciais:
Comunidade Yjerê da Ponta do Arado, em Porto Alegre (bairro Belém Novo), onde o cacique Timóteo preferiu se manter na área após abandonarem suas casas às margens do Guaíba e se deslocarem para um terreno mais elevado.
Comunidade Pekuruty, em Eldorado do Sul, e Comunidade Pindó Poty, em Porto Alegre (bairro Lami), as quais precisaram deixar suas áreas com apoio da Defesa Civil. No entanto, após a saída das famílias Guarani da comunidade Pekuruty, o DNIT destruiu suas edificações às margens da BR-290, sem qualquer consulta ou justificativa.
As águas ainda seguem subindo na região de Porto Alegre. Nos municípios de Canoas, Esteio, Sapucaia, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Guaíba e Eldorado do Sul, Cachoeirinha, além dos bairros de Porto Alegre, especialmente nas zonas Norte e Sul, a situação ainda é desesperadora.
Precisamos que as águas baixem para a gente poder atuar no sentido de assegurar habitação, alimentação e todo o apoio na reconstrução das comunidades indígenas.
Além das comunidades já citadas, realizamos um mapeamento preliminar para identificar as comunidades indígenas mais impactadas em decorrência deste evento climático extremo. O mapeamento foi realizado em conjunto pela Comissão Guarani Yvyrupa, Cimi-Sul, FLD/ Comin/Capa e CEPI, a partir do contato com a a diversas lideranças/representantes indígenas e acessando as informações da Funai e Sesai.
Vídeo da Aldeia Tekoa Ñhu Poty, em Passo Grande (RS):
Até o momento, constam as seguintes comunidades indígenas em situação de emergência:
Água Santa: Kaingang Acampamento Faxinal e TI Carreteiro.
Barra do Ribeiro: Mbyá-Guarani Passo Grande Ponte, Flor do Campo, Yvy Poty, Ka’aguy Porã, Guapo’y e Coxilha da Cruz, Tapé Porã.
Cruzeiro do Sul: Kaingang Acampamento TãnhMág (RS-453).
Eldorado do Sul: Mbya Guarani Pekuruty.
Engenho Velho: Kaingang TI Serrinha.
Erebango: Kaingang TI Ventarra, Guarani de Mato Preto.
Estrela Velha: Ka’aguy Poty.
Estrela: Kaingang Jamã Tý.
Farroupilha: Kaingang Pãnónh Mág.
Faxinalzinho: Kaingang TI Kandóia.
Iraí: Kaingang Goj Veso e Aeroporto.
Lajeado: Kaingang , Foxá.
Maquiné: Mbya Guarani Ka’aguy Porã, Yvy Ty e Guyra Nhendu.
Mato Castelhado: Kaingang Tijuco Preto.
Osório: Mbya Guarani Tekoa Sol Nascente.
Passo Fundo: Kaingang Goj Yur, Fág Nor.
Porto Alegre: Charrua Polidoro, Mbyá-Guarani Ponta do Arado e Pindó Poty, Mbya Anhatengua, Kaingang Gãh Ré (Morro Santana), Tupe Pan (Morro do Osso).
Riozinho: Ita Poty.
Rodeio Bonito e Liberato Salzano: TI Rio da Várzea (emergência na Linha Demétrio).
Salto do Jacuí: Kaingang Horto Florestal, Aeroporto e Júlio Borges, Mbyá-Guarani Tekoá Porã.
Santa Maria: Mbya Guarani Guaviraty Porã e Kaingang Kētƴjyg Tēgtū (Três Soitas).
Santo Ângelo: Mbya Guarani Yakã Ju.
São Francisco de Paula: Xokleng Konglui.
São Leopoldo: Kaingang Por Fi Gá.
São Gabriel: Mbya Guarani Jekupe Amba.
São Miguel das Missões: Mbyá-Guarani Koenju.
Tabaí: Kaingang PoMag.
Terra de Areia: Mbya Guarani Yy Rupa.
Torres: Mbya Guarani Nhu Porã.
Palmares do Sul: Mbya Guarani da Granja Vargas.
Viamão: Mbya Guarani Nhe’engatu (Fepagro), Pindó Mirim, Mbya Guarani Jatai’ty TI Cantagalo e Takua Hovy.
Vicente Dutra: Kaingang TI Rio dos Índios.
As Organizações encaminham essa relação, que não é definitiva, pois ainda há informações necessárias a serem acrescentadas, mas através da qual se pede ao Poder Público atenção no sentido de garantir assistência adequada neste tempo de tantas adversidades.
Pede-se também apoio às organizações e entidades da sociedade no sentido de auxiliarem, através de apoios e ações solidárias às comunidades que necessitaram de alimentação, material de higiene e limpeza além de lonas, telhas, colchões e cobertores.
Vídeo da Aldeia Tekoa Ñhu Poty, em Passo Grande (RS):
Assinam esse documento a Comissão Guarani Yvyrupa, o Cepi, Cimi Sul e FLD/Comin/Capa.
Apoios e ações solidárias às aldeias indígenas:
Aldeias necessitaram de alimentação, material de higiene e limpeza além de lonas, telhas, colchões e cobertores.
👉🏽 Ponto de coleta de doações para as comunidades indígenas:
📍Paróquia Menino Jesus de Praga, Rua Dr. Pitrez, 61, bairro Aberta dos Morros, Porto Alegre/RS
Em ato histórico, mobilização nortense faz ecoar o grito “não queremos mineração”. A comunidade exige preservação da agricultura familiar, da pesca artesanal, da qualidade da água e a garantia de seus direitos, como o de consulta livre, prévia e informada – que prevê que comunidades afetadas por megaprojetos sejam consultadas conforme suas regras antes que estes empreendimentos se instalem.
Com alto impacto socioambiental negativo, a primeira fase do projeto de iniciativa da empresa Rio Grande Mineração S.A. (RGM) está em fase de análise para emissão da Licença de Instalação pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). O órgão de licenciamento ambiental estará em reunião com a empresa nesta semana, visitando áreas que constam no projeto. A agenda do Ibama não prevê um momento de diálogo com a comunidade nortense. Moradores de São José do Norte se mobilizam para que o órgão inclua na agenda conversas com a população.
No dia 16 de abril, em mais um ato histórico, a mobilização popular fez ecoar o grito em defesa da região e de sua diversidade de vida, dizendo não à mineração. O ato contou com carreata composta por mais de duas centenas de carros, caminhões e veículos agrícolas, e percorreu cerca de 100 km de extensão, representando toda a área do município que seria impactada pela mineração em todas as suas fases (da localidade de Capão da Areia até a zona urbana). Após a carreata, a chuva ininterrupta não impediu a mobilização de seguir. A pé, em marcha pelas ruas do centro urbano de São José do Norte, manifestantes reivindicaram os seus direitos, denunciando os riscos do projeto para a saúde das pessoas, águas, ar, solo, fauna e flora, para produção de alimentos, pesca e cultura local.
Falas abordaram os impactos da mineração no RS e a devastação que a extração de Ilmenita (óxido de titânio e ferro), Rutilo (óxido de titânio) e Zirconita pode trazer. Também foi pontuada a importância da organização popular para barrar o projeto, assim como a necessidade de o Ibama escutar o posicionamento do povo. Elisete dos Santos Amorim, integrante do Movimento Mineração Aqui Não, vive no interior de São José do Norte, e como ela mesma diz, é agricultora desde o ventre de sua mãe. Ela relata que a luta do Movimento começou em 2011, com marco em 2014 quando os primeiros documentos para barrar o Projeto Retiro foram encaminhados. “Nosso objetivo maior hoje é sensibilizar o Ibama para que ele não dê esse laudo favorável ao projeto de mineração. O povo tá contra. Estamos na defesa da nossa água, do nosso território, da nossa história, do nosso povo, da nossa cultura”, evidenciando a luta pela preservação do território. De acordo com a agricultora, até hoje a RGM não foi capaz de garantir que a água não vai ser contaminada e nem que o oceano não vai entrar. “Como é que a gente vai querer um projeto desses? Mineração para quem? Para nós não é. Nós não precisamos disso daí, a gente é feliz do jeito que é”, expôs.
Eduardo Raguse, da Amigas da Terra Brasil e da Coordenação do Comitê de Combate à Megamineração do RS (CCM), pontuou que o que está acontecendo em São José do Norte faz parte de um projeto de expansão minerária no Rio Grande do Sul . Ele rememorou a importância da organização popular para frear megaprojetos, citando um caso que assolou a capital gaúcha e arredores anos atrás: A Mina Guaíba, que se instalada seria a maior mina de carvão do Brasil. “Assim como vocês, fizemos uma grande luta. Tenho certeza que com essa mobilização vocês vão mostrar para o Ibama e para as autoridades locais que São José do Norte não quer mineração”, mencionou.
O projeto de mineração batizado de Atlântico Sul está dividido em três fases: 1- Projeto Retiro, 2- Projeto Estreito-Capão do Meio e 3- Projeto Bujuru. Os nomes de cada fase correspondem a uma das comunidades diretamente atingidas. Hoje, devido a uma autorização do Ibama, o projeto Atlântico Sul está sendo licenciado de forma “fatiada” por fase, o que mascara as populações diretamente atingidas e a avaliação ambiental dos impactos cumulativos. Em sua primeira fase, em licenciamento, pretende explorar cerca de 600 mil toneladas de minerais pesados como Ilmenita, Rutilo e Zirconita. O impacto desta fase é numa área de aproximadamente 30 quilômetros de extensão e 1,6 quilômetros de largura, localizada entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico.
O ato evidenciou a força do Movimento Mineração Aqui NÃO, composto pelas famílias moradoras das zonas rurais e urbana do município, trabalhadores da agricultura, da pesca e de diferentes setores da economia local. Assim como do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São José do Norte, da Cooperativa dos Agricultores Familiares (Cooafan), do Quilombo Vila Nova, das Colônias de pescadores, do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais, Grupo de Agroecologia Econorte, Centro Comunitário da Várzea e de várias Associações de moradores, agricultores e pescadores. E tem apoio do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Comitê de Combate à Megamineração do RS (CCM), Amigas da Terra Brasil, Instituto Preservar, Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), grupos de pesquisa de universidades e entidades da sociedade civil gaúcha. A força da população pode ser evidenciada pelo fato de todas/os vereadoras/es e o executivo municipal se posicionarem atualmente contra a mineração.
“Viemos mostrar nosso repúdio a esse projeto nefasto que quer explorar minerais em São José do Norte para atender interesses externos e interesses da indústria bélica, da indústria aeroespacial e de setores da economia que não dialogam com a vida do povo de São José do Norte. Precisamos fortalecer muito a agricultura familiar, a pesca artesanal, o modo de vida tradicional. Precisamos garantir a soberania popular e garantir o direito e a voz”, contou o atualmente vereador do São José do Norte Luiz Gautério, que se mobiliza com o Movimento Mineração Aqui Não e estava presente no ato.
Água para vida! Mineração para morte!
Um dos principais aspectos levantados pelos moradores de São José do Norte na luta contra a mineração é a possibilidade de contaminação da água. Essa preocupação é de extrema importância, visto que o município é totalmente abastecido por água subterrânea e não possui outra alternativa para o consumo humano e para a dessedentação animal. No Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e nos estudos complementares apresentados pela empresa não fica comprovado que a água subterrânea do município terá a sua qualidade para o consumo mantida. Em quase todas as falas durante o ato esse aspecto foi levantado.
A insegurança com relação a qualidade e disponibilidade da água vem sendo apresentada pela população ao longo dessa última década de luta contra a mineração. E, durante todo esse tempo, não conseguem ter uma resposta satisfatória por parte do órgão ambiental licenciador e do empreendedor. A água é uma questão de vida para a população de São José do Norte, e a perda da sua qualidade pode significar a impossibilidade da continuidade em seu território. Fato que é indiferente ao empreendedor, mas que deveria ser ponto central na tomada de decisão do órgão ambiental licenciador.
Marcela de Avellar Mascarello e outros (2022), em pesquisa realizada, atestam que no “EIA apresentado pela empresa não traz a garantia de que não haverá prejuízo a esse recurso, tampouco houve qualquer interesse e esforço da empresa em cumprir parte do Termo de Referência para a sua elaboração, em que lhe imputava “caracterizar os principais usos na área de influência direta do projeto, suas demandas atuais e futuras em termos quantitativos e qualitativos”. Há, portanto, uma lacuna de informação que expõe a população nortense a riscos de escassez e de diminuição da qualidade do recurso hídrico. Então, perante a incerteza acerca da disponibilidade deste recurso em quantidade e qualidade adequadas ao consumo da população nortense, durante e após a exploração dos recursos minerários, deve-se usar o princípio da precaução e negar a instalação do empreendimento”.
Flávio Xavier Machado, coordenador e vice-presidente da Associação da Comunidade Quilombola Vila Nova, também agricultor, contou que ao longo dos anos, na propriedade em que vive com Vanuza, foram produzindo mais variedades, vencendo desafios e que, hoje, vão para além da subsistência, levando alimentos para outras famílias. “A gente tá conseguindo produzir alimento com qualidade e respeitando a natureza, respeitando o meio ambiente. E essa é a nossa grande preocupação. A gente tá nessa luta para que a gente consiga continuar sobrevivendo dessa forma. Que os grandes empreendimentos que chegam aí não nos impactem tão forte. Hoje, olhando esse projeto da RGM, se ele não for alterado de algumas formas ele vai nos deixar sem condições de ter água de consumo humano e animal e por um bom período… A partir do momento que eles passarem pelo território, a gente não vai tá conseguindo produzir alimento”, afirmou.
Fato que vem sendo entoado desde 2014 pelos moradores de São José do Norte e desprezado até o presente momento pelo órgão ambiental licenciador, que se espera que nesse momento utilize o princípio da precaução e salvaguarde a vida da população nortense ao invés do lucro da empresa.
Territórios de vida e resistência ou uma zona de sacrifício? Os próximos atingidos
A mineração opera historicamente impondo a mudança de paisagem, impactos na produção de alimentos, violação de uma série de direitos, abusos e a constante ameaça às formas de ser e existir dos povos. Caso o Ibama dê a licença para o Projeto Retiro, o que conhecemos como São José do Norte se transformará em outra paisagem. E a gravidade vai além dessa alteração.
Com o projeto vem a contaminação de águas, lençol freático, solo e alimentos. Também são feridos os modos de viver de comunidades tradicionais que coabitam os territórios, conectadas pela vida pesqueira aos fluxos das águas entre o Oceano Pacífico e a Lagoa dos Patos. Ou vinculadas à terra, cultivando sementes que passam de geração em geração e que contam uma história ancestral. Que crescem, no cuidado e trabalho árduo do dia a dia como alimentos saudáveis e sem veneno, que chegam à mesa de diversas famílias.
Vanuza da Silveira Machado é agricultora familiar e quilombola, integrante da Associação e Comunidade Quilombola Vila Nova, localizada em Capão do Meio, terceiro distrito de São José do Norte. Território que será diretamente atingido pela segunda fase do Projeto Atlântico Sul, mas que sofrerá alguns impactos negativos em caso da emissão da licença de instalação da Fase Retiro. “Nós aqui do Quilombo Vila Nova somos todos pequenos agricultores familiares. A gente vive da roça, plantamos um pouco de tudo. Aqui na nossa residência a gente planta arroz, feijão, milho, batata, cebola, tem uma pecuária também. A gente vende esse arroz para merenda escolar. Outros quilombolas também. No mais todo mundo vive da pecuária e da pesca”, contextualizou, explicando a importância da mobilização coletiva para frear a mineração no local, que atinge seu modo de vida, a produção de alimentos e afeta também culturas alimentares da região e o acesso à terra, outro direito que deveria ser assegurado.
Uma das preocupações dessa e outras comunidades que participaram do ato é de que o licenciamento ambiental das próximas fases se torne apenas um rito meramente protocolar. Sem que sejam escutados, fato que já ocorre no Licenciamento da Fase 1 visto os impactos negativos que serão imputados à comunidade.
Mobilizada na luta contra a mineração, pelo acesso à terra, assim como pelo reconhecimento e titulação de quilombos, Vanuza abordou a importância da população estar cada vez mais unida na luta, sem se desmobilizar. Em suas falas, mais de uma vez resgatou que os quilombolas têm raízes em São José do Norte, e que é preciso lutar com as raízes que se leva consigo. “Nós, quilombolas, queremos ficar aqui. Queremos o nosso lugar. Aqui estão as nossas raízes. Então a gente tá mobilizado, todos quilombolas juntos, para lutar contra a mineração. A gente não quer que essa empresa se instale, a gente tá lutando muito para isso, junto com os pescadores e toda a comunidade do Capão do Meio, todo interior de São José do Norte. Vamos dizer não à mineração. A gente não quer sair daqui. Se a gente sair daqui, o que é que a gente vai fazer? Para onde nós vamos?”, indagou.
A socióloga e dirigente nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Iara Reis, denunciou as falsas promessas das empresas minerárias, tanto quanto à geração de trabalho e desenvolvimento local, quanto à garantia de moradia para quem é desalojado quando o projeto se instala. “Os que querem ir embora, que garantias têm? Lá na nossa região (Pará) a gente tem experiência de comunidades que foram expropriadas, remanejadas de forma cruel para outro território, outro assentamento. E depois tiveram que ser remanejadas de novo. A pessoa já tá ali desde novinha, cresceu e envelheceu ali, e daí foi mandada para outro lugar. Chegando lá não teve garantia que ia ficar”, contou, apontando a insegurança que a mineração traz neste aspecto.
A comunidade quilombola teve seu direito a consulta prévia, livre e informada violada nos processos de licenciamento ambiental dos Complexos de Geração Eólica Bojuru e Ventos do Atlântico, conforme pareceres técnicos e denúncia realizada ao Conselho Estadual dos Direitos Humanos. Ainda, apesar de não estarem na área de lavra da Fase 1 do Projeto Atlântico Sul, vão sofrer alguns dos impactos negativos e vão ser diretamente atingidos durante a Fase 2. Sem consulta livre, prévia e informada a comunidades tradicionais que podem ser impactadas por seu avanço, os projetos ferem a Convenção nº169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Reside aí um dos grandes motivos para que o Ibama considere a população local antes de emitir licença de instalação para a RGM.
“A gente já preserva. Tá preservando naturalmente esse nosso território. E esses empreendimentos vão alterar e muito, tanto a RGM quanto a eólica. E aí eles não tão respeitando a 169 da OIT, que garante esses direitos de os povos tradicionais serem ouvidos, poderem ser consultados. A gente não foi consultado em nenhum momento, isso é uma das questões mais graves. Mesmo tendo a lei do nosso lado, e aí que a gente vê que a coisa é muito complexa, eles não obedecem. Só por estarmos aqui por muito tempo e termos o título da Fundação Palmares a gente deveria ser consultado e isso também não aconteceu. Então a gente tá reivindicando e questionando esses processos todos, que de uma certa forma não tá sendo feito da maneira correta”, evidenciou Flávio.
Flávio ressaltou a importância da titulação dos quilombos na garantia de direitos e reparação histórica do povo negro brasileiro, que segue sendo afrontado por diversas formas de violência, sobretudo com o avanço de projetos que não consideram os territórios e agem com uma lógica que reproduz o colonialismo. Pontuou como esses megaprojetos interferem na vida cotidiana, e que a titulação, assim como o reconhecimento da história negra é fundamental para barrar a violência desses megaprojetos na sociedade. “Somos descendentes de escravos aqui, e aí a partir disso a gente começa a buscar um pouco da história, das pessoas que passaram bem antes de nós, nossos avós, bisavós… E gente começa a ter esses relatos das pessoas mais velhas, que o nosso bisavô foi descendente de escravo aqui na região, e isso que nos deu a titulação pela Fundação Palmares, essa comprovação. E agora a gente tá buscando que o Estado reconheça isso. Essa é a nossa luta, para poder garantir que esses grandes empreendimentos não interfiram no nosso modo de vida, que é isso que a gente quer fazer, é isso que a gente faz há muito tempo”, sintetizou.
Evidenciando o racismo estrutural, mencionou ainda a injustiça da questão da distribuição de terras em solo brasileiro: “Outros povos chegam no Brasil e têm direito à titulação de terra e nós nunca tivemos isso. Os números por si só já mostram. No Rio Grande do Sul a gente tem quatro comunidades tituladas. Parece que são 160 comunidades quilombolas no RS e só tem quatro tituladas. Isso mostra que o Estado tá ausente. E isso implica em bastante consequência para nós”.
Relacionando a necessidade da titulação de terras ao movimento contra a mineração em São José do Norte, Flávio expôs que o objetivo de ter começado essa luta na comunidade quilombola é para que possam ter direito a viver neste território onde seus antepassados viveram, por mais de cem anos. “Esse empreendimento vai afetar muito a nossa sobrevivência, o nosso modo de viver na verdade. Até hoje a gente não tem nenhum estudo e nenhuma informação técnica que garanta que esse impacto não seja tão forte como o empreendimento vem colocando. E para a gente poder se defender desse processo minerário que tá vindo se instalar em São José do Norte, a gente precisa ter a titulação da nossa área.”
O território quilombola Vila Nova vem sendo cercado por megaempreendimentos sem que os seus direitos sejam respeitados. Representando, dessa forma, mais um processo de espoliação do povo quilombola, reforçando o processo de racismo estrutural no processo de licenciamento ambiental, conforme denunciado por suas lideranças.
Impactos Socioambientais do avanço da mineração não são considerados em estudos apresentados pela empresa
Entre os impactos negativos do projeto de mineração em São José do Norte, Caio dos Santos, Pesquisador do Observatório dos Conflitos do Extremo Sul do Brasil destaca os seguinte: possibilidade na piora da qualidade da água subterrânea que serve para o consumo humano e dessedentação animal; aumento do tráfego de veículos pesados e leves, aumento da poeira nas estradas e da exposição a metais pesados, aumento na pressão sobre os serviços públicos como saúde e educação, impacto nas atividades tradicionais de agricultura e pesca artesanal, risco a espécies endêmicas da fauna e flora, impactos na avifauna migratória, falta de consulta prévia, livre e informada às populações tradicionais, aumento do custo de vida, sobrecarga no na rede de abastecimento elétrico que já é deficitária.
Luiz Gautério, que tem formação em Gestão Ambiental , afirmou que o estudo de Impacto Ambiental apresentado pela RGM apresenta várias falhas. “Diversas delas foram apontadas pelo Ministério Público como inconsistências do licenciamento ambiental. Temos uma fragilidade muito alta da nossa água subterrânea, a água de uso, para as pessoas beberem no campo, para os animais beberem, para a manutenção dessa condição dinâmica do ecossistema que dialoga com o oceano, como o berçário, os corpos d’água que são pequenos estuários de vida marinha, com as aves migratórias que passam por aqui. Mas principalmente, nós temos pessoas que dependem exclusivamente da água subterrânea para viver. Por isso que nós precisamos denunciar que o projeto de licenciamento ambiental da empresa RGM está colocando em risco todo esse modo de vida do campo, porque as pessoas podem ficar de uma hora para outra, num período curto de tempo, com a água contaminada. E pelo simples fato da mistura da estratigrafia do solo. E tem outros aspectos que não foram considerados, entre eles mudanças climáticas, que não está presente no estudo de impacto ambiental”, explicou.
Além disso, como aponta a Ação Civil Pública (ACP n. 5007290-39.2018.4.04.7101) ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF), as comunidades de pescadores/as artesanais dentro da área de lavra não constam no Estudo de Impacto Ambiental e tiveram seu direito a consulta prévia, livre e informada violado, assim como os/as cebolicultores/as do município. Viviane Machado, do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP), salientou no ato que: “É não para a mineração. É não para as eólicas. É não para qualquer processo que exclua as comunidades tradicionais de São José do Norte”. Em parecer técnico, elaborado no ano de 2017, pesquisadores atestam que “o órgão ambiental se exime de sua responsabilidade sobre o licenciamento ambiental, ignorando bases legais relevantes como a OIT 169, que versa sobre a necessidade de manifestação das populações tradicionais sobre projetos de desenvolvimento em seus territórios, dentre outros”. O que tornaria nula a Licença Prévia emitida pelo órgão ambiental, conforme pedido realizado pelo MPF na ACP e sustentado pelo movimento contra a mineração.
Uma luta coletiva
Nos últimos anos, crimes socioambientais de proporções catastróficas, ligados à expansão minerária, assolam o país. Recentemente, o caso da Braskem, em Maceió (AL), evidencia o descaso das empresas e para quem a mineração serve. O rompimento das barragens em Brumadinho e Mariana (MG), crimes ambientais pela qual a Vale, BHP Billiton e Samarco respondem judicialmente, também são feridas abertas em um povo que ainda não encontrou corpos de familiares, e que segue lutando para ter os seus direitos assegurados.
A mineração tem em sua genealogia a violência, a contaminação e a exploração da classe trabalhadora e da natureza. Diversos são os casos na América Latina em que cidades passaram por um ciclo de aparente riqueza, temporária, concentrada nas mãos de poucos e geradora de miséria para a maioria. Essas cidades, que em alguns casos se transformaram em grandes minas, vivenciaram um rastro de destruição, que ocasionou em perdas irrecuperáveis.
Enquanto a mineração se entranha em comunidades levando a devastação e a morte, das entranhas destes territórios a mobilização popular segue gritando por suas águas e pela vida. Em São José do Norte não é diferente. A resistência ao projeto parte de uma coletividade de gentes, que organizada por meio do Movimento Mineração Aqui Não, representa a voz da maior parte da população urbana e rural do município. Famílias que, sobretudo, vivem das águas e do solo da região, do cultivo e da pesca artesanal. Manter estas formas de vida preservadas, assim como as condições que as sustentam, tem valor para todo conjunto da população, para além das fronteiras em que pode ser instalado o Projeto. Por isto, garantir a produção de alimentos, a qualidade das águas, a saúde, e os territórios tradicionais deve ser uma luta de todas, todes e todos.
A luta contra o Projeto Retiro em São José do Norte representa não apenas a defesa de um território específico, mas também a resistência contra um modelo de desenvolvimento predatório, que coloca em risco a vida e os meios de subsistência de comunidades locais, e que afeta o conjunto da classe trabalhadora brasileira que é saqueada pelo atual modelo mineral do país. A mobilização popular é o recurso dos povos para a proteção dos bens comuns e dos direitos das gerações presentes e futuras.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou recentemente os dados da violência no campo do primeiro semestre deste ano: foram registrados 973 conflitos, representando o segundo semestre mais violento dos últimos 10 anos, perdendo apenas para o ano de 2020, no qual foram registrados 1.007 conflitos. Em sua maioria, os conflitos envolvem a questão da terra e território. Segundo a CPT, ao todo foram assassinadas 18 lideranças até outubro deste ano, sendo que os números aumentaram exponencialmente neste mês. Apenas entre 10 e 11 de novembro, 8 assassinatos ocorreram num único final de semana: 4 quilombolas vítimas de chacina na Bahia; 3 sem-terra assassinados na Paraíba; 1 indígena assassinado no Pará. E durante a semana seguinte, mais uma morte indígena.
O retorno de um governo progressista e a possibilidade de retomada das políticas públicas para efetivação dos direitos constitucionais, tais como a concretização da reforma agrária, a demarcação das terras indígenas e a titulação dos territórios quilombolas, faz movimentar as forças de direita. Darci Frigo, coordenador-executivo da organização de direitos humanos Terra de Direitos, analisa que “quando o poder central está na mão dos setores mais progressistas, da esquerda, que não são de confiança das oligarquias, elas passam a atuar no âmbito local com a articulação de forças policiais dos governos dos estados ou das milícias privadas.
Esses setores não confiam no governo central, ainda mais com a possibilidade de efetivação de políticas públicas, como a regularização fundiária, reforma agrária, desintrusão e demarcação de terras indígenas, titulação de territórios quilombolas. Muitos assassinatos têm relação com possíveis limites à desenfreada expansão do agronegócio e seus grandes lucros com anos seguidos de altos preços das commodities agrícolas”.
A oligarquia rural brasileira é conhecida pela sua violência. É comum haver uma influência desse setor sobre as forças de segurança pública estaduais e locais para realização de despejos e ameaças. Nesse sentido, o tema da violência no campo encontra o problema da segurança pública no Brasil. Vários dos conflitos agrários estão vinculados às atuações policiais envoltas em abuso de autoridade. Além disso, a oligarquia mobiliza forças de segurança privada, que atuam como verdadeiras milícias rurais, exterminando lideranças capazes de mobilizar a luta por direitos que afetem os interesses econômicos.
As movimentações políticas em Brasília afetam consideravelmente este cenário. Depois da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de derrubar a tese do marco temporal para a demarcação das terras indígenas, explodem conflitos nas regiões, nos quais o agronegócio organizou uma ofensiva aos territórios indígenas. As lideranças indígenas e quilombolas são as mais ameaçadas. A determinação do ministro Barroso para efetivação dos processos de desintrusão das Terras Indígenas Apyterewa e Trincheira Bacajá tampouco vem sendo fácil de executar pelo Ministério da Justiça. Inclusive, a possibilidade de avanço das titulações quilombolas gerou uma contra ofensiva, com as vidas ceifadas das lideranças quilombolas na Bahia e no Maranhão.
A violência refletida nos territórios está no Congresso Nacional. A força do agronegócio impõe violações aos direitos constitucionais, como nos questionamentos às decisões do STF, na reabertura do debate do marco temporal e nos projetos de lei de flexibilização do licenciamento ambiental. Sensível a aliança da bancada do boi com a da bala no apoio à proposta de nova lei das Polícias Militares (PL n.º 3045/2022, na mesa da presidência), que permite ainda menor controle e transparência da sua atuação.
Novamente, deparamo-nos com o cenário da violência no campo de 2003, quando a chegada do primeiro Governo Lula e a possibilidade de mudanças concretas na garantia de direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais ao povo brasileiro fez insurgir a classe, até então dona do poder. Quando não controla o poder público federal, ainda que com sólidos braços no governo de composição, a oligarquia rural estende suas ações aos poderes locais, estaduais e municipais. Como enfrentaremos essa ofensiva?
Duas discussões centrais do governo para enfrentar o problema
O tema da segurança pública tem sido um desgaste na imagem do Governo Lula. Sem adentrar no vespeiro, interessa-nos refletir sobre as dinâmicas de controle interno e externo da atuação policial. A Polícia Militar no Brasil está mais associada ao militarismo que à segurança pública, assumindo uma inversão de poder; inclusive, algumas PMs sequer respondem aos governos estaduais. Há ausência de punição sobre os casos de infração, com muitos arquivamentos de inquéritos. Outro elemento é a falta de transparência da Instituição, não apenas quanto a sua atuação, mas também quanto ao orçamento. Igualmente, a responsabilização para os gestores que fazem uso político das polícias para efetivação de seus interesses.
A violência, a polícia e a responsabilização pelas infrações, especialmente o abuso de autoridade, precisam ser tratadas no país. A condução da segurança pública, com o aumento da militarização nos territórios, não é a resposta eficiente à crise. É preciso haver coragem para enfrentar uma reforma da organização das polícias Civil e Militar no país, e isso definitivamente não está na proposta atual de lei orgânica das PMs.
Outro tema importante é a política de defensores e defensoras de direitos humanos, dos povos e dos territórios. No país que figura como um dos que mais mata defensores e defensoras no mundo, o tema parece não ser uma prioridade. Desde as discussões do Grupo de Trabalho da Transição, o governo sabia da determinação judicial para formar um Grupo de Trabalho para reformular a política de defensores no país, com a missão de construir o Plano Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, do meio ambiente e comunicadores e o anteprojeto de lei.
Apesar disso, o Decreto com a criação do GT (Decreto n.º 11.562/2023) saiu em 13 de junho de 2023. E a primeira reunião do grupo só aconteceu no dia 10 de novembro. Em meio a essa morosidade, vários defensores e defensoras vêm sendo assassinados. As respostas são a investigação criminal dos mandantes e executores, elemento muito importante para cessar a impunidade, contudo insuficiente. Enquanto as políticas de defensores não considerarem os aspectos coletivos da violação, e enfrentarem as questões estruturais que dão causa à ação dos defensores, as tragédias seguirão se repetindo.
A proteção da vida humana e da integridade física é obrigação inegociável do poder público. Não existem expectativas de que o atual governo resolva todos os problemas estruturais que como país enfrentamos; porém, se houver recuos em prol da conciliação com a barbárie da oligarquia agrária brasileira, processos políticos fundamentais na construção de outro país, de um Brasil sem fome e sem violência, não serão possíveis.
É urgente e necessário que os ministérios assumam a orientação de governo de construção popular e participativa de políticas públicas, para que nossos problemas sejam tratados entre nós, com seus limites e potencialidades. Avançar no desenvolvimento de perspectivas regionais e locais também é fundamental. Tanto para gestão da segurança pública como para a efetiva proteção dos defensores de direitos humanos, dos povos e dos territórios.