Azotea: podcast da Amigos da Terra América Latina e Caribe (ATALC) traz uma proposta profunda por justiça ambiental e social

Te apresentamos “Azotea”, o novo podcast de Amigos da Terra América Latina e Caribe (ATALC), uma proposta profunda por justiça ambiental que sacudirá o mundo desde as alturas. Em três episódios, a impunidade corporativa e as injustiças de um modelo econômico que coloca o lucro acima das vidas são expostas, assim como o impacto na vida dos povos e territórios.

A série sonora é um mergulho na luta dos povos amazônicos e da União das Pessoas Afetadas pela Chevron-Texaco (UDAPT) pela defesa dos seus territórios contra a ação criminosa da #Chevron. Além da denúncia, o podcast traz um chamado para a ação, instigando ouvintes a se unirem na defesa dos direitos humanos e à proteção do meio ambiente. Nessa travessia sonora, você descobrirá como pode contribuir na defesa de nosso planeta e dos direitos dos povos afetados.

🎧 Acesse, escute e acompanhe o podcast aqui

Episódio 1 | A essência da luta:

No primeiro episódio, por meio da história de Bruna, uma jovem equatoriana que enfrenta o caos em Buenos Aires, exploramos o impacto da conta    minação petroleira na Amazônia equatoriana e a luta das comunidades indígenas por seus direitos.

Episódio 2 | A espera:

Neste episódio, Bruna Montes, uma jovem ativista ambiental, usa as redes sociais para protestar do telhado de um prédio em Buenos Aires. Ao contar a sua história, ela revela a realidade devastadora que a sua família enfrenta: a sua avó, vítima da poluição causada pela empresa Chevron, está em estado crítico devido a uma nefropatia aguda.

Por meio de testemunhos e arquivos midiáticos, é explorado como o legado de injustiça deixado pela decisão do Tribunal de Haia e como a luta pela justiça ambiental não é apenas uma questão local, mas um desafio global que envolve todos nós. A voz de Bruna ressoa como um apelo à ação, conclamando os ouvintes a se unirem na defesa dos direitos humanos e na proteção ambiental.

Episódio 3 | Ultimato:

No episódio final de Azotea acompanhamos a luta de Bruna Montes, ativista equatoriana que enfrenta a Chevron e exige justiça pela devastação ambiental na Amazônia. Por meio de uma emocionante conferência de imprensa e de testemunhos comoventes das pessoas afetadas, o episódio leva-nos às consequências da poluição causada pelas empresas transnacionais. Unimo-nos a Bruna no seu protesto para que a ONU e outras organizações internacionais adotem um Tratado Vinculante, um passo crucial para acabar com a impunidade corporativa e proteger os direitos humanos.

Este podcast foi produzido com o apoio financeiro da ASDI por meio do ForumCiv. Nem ASDI nem o ForumCiv participaram na produção deste podcast, nem são responsáveis ​​pelo seu conteúdo ou pelas opiniões nele expressas. Uma produção original da Tristana Productions para ATALC. 

Tratado Vinculante: A sociedade civil denuncia a influência que grandes empresas exercem na ONU

A histórica 10ªSessão de Negociações por um Tratado da ONU que faça as com que as grandes empresas transnacionais (ETN)  sejam responsabilizadas por suas violações de direitos humanos (Tratado Vinculante) acaba de começar em Genebra, na Suíça. Ainda que a princípio seria realizada em outubro de 2024, a decisão unilateral e pouco democrática da Presidência de alterar as datas das negociações apenas um mês antes afetou a presença física da sociedade civil.

Apesar disso, a Amigos da Terra Internacional, junto com a Campanha Global para reivindicar a soberania dos povos, desmantelar o poder das transnacionais e por fim à impunidade está decidida a garantir que a sociedade civil, as comunidades afetadas e os povos indígenas não sejam deixados de lado.  A Amigas da Terra Internacional se mantém firme para garantir que o Tratado Vinculante reflita a vontade dos povos, e suas demandas por justiça às pessoas afetadas que lideram a luta contra o poder empresarial, acima dos desejos das empresas transnacionais.

“As atividades desmedidas das Empresas Transnacionais sangram as comunidades, nossas terras, o meio ambiente e os povos indígenas. As grandes empresas seguem violando os direitos humanos em todo mundo com impunidade. Um Tratado Juridicamente Vinculante, forte e efetivo, deve nos garantir o direito de acesso à justiça e às reparações. Deve garantir que as ETN possam ser julgadas por tribunais independentes pelos delitos cometidos em qualquer parte do planeta. Deve garantir a reparação plena pelos danos, especialmente para as pessoas mais vulneráveis. É inaceitável que se dê maior relevância aos interesses das grandes empresas ao invés de aos direitos humanos”  Pablo Fajardo, UDAPT / Amigos da Terra Equador

O valor agregado do Tratado Vinculante reside na sua complementariedade com as regulamentações nacionais e regionais em matéria de empresas transnacionais. De todas maneiras, deve ser ambicioso e colocar as comunidades e os povos no centro. Muitas destas regulamentações são insuficientes para cobrir todas as cadeias de valor globais e as violações dos direitos humanos que as empresas transnacionais continuam a cometer nelas. As leis nacionais por si só não são suficientes.” Aurore Dorget, Amigos da Terra França.

No entanto, como ocorre em muitas negociações da ONU, o poder das grandes empresas encontrou o seu lugar nas salas de negociações:

“É claro que o lobby empresarial presente nas salas de negociações (como a Organização Internacional de Empregadores, ou o Conselho de Negócios Internacionais dos Estados Unidos) está decidido a debilitar o texto do tratado e converte-lo em outro instrumento frágil e inútil, baseado na autorregulação e na devida diligência das grandes empresas. As propostas dos países do Norte Global de incluir a múltiplas partes interessadas não são mais que tentativas para consolidar ainda mais a cooptação empresarial do processo. Exigimos medidas claras para proteger o espaço contra a influência de grandes empresas  e garantir que as vozes dos povos afetados e dos Estados do Sul Global sejam as que deem forma ao Tratado Vinculante”, Erika Mendes
Justiça Ambiental / Amigos da Terra Moçambique.

“A margem de manobra da sociedade civil e a democracia se encontram ameaçadas nas Nações Unidas e as negociações do Tratado Vinculante não são uma exceção.  Quer se trate de com que projeto de texto que avançamos, de especialistas selecionados ou das datas das sessões que são alteradas no último minuto, todas estas são partes técnicas da ONU que têm implicações muito reais para as comunidades e estados afetados do Sul Global, cujas vozes continuam a ser marginalizadas nas negociações que deveriam liderar.”

Publicado originalmente em Amigos da Terra Internacional, no link: https://www.foei.org/es/tratado-vinculante-la-sociedad-civil-denuncia-la-influencia-que-ejercen-las-grandes-empresas-en-la-onu/?fbclid=IwY2xjawHP-XVleHRuA2FlbQIxMQABHVtCZqJMpuo0-C3YsePfz1QNVtR4yNpmIPsb8RsyNJX82Gj4ih_rfOF1vQ_aem_N2iegz1O2B4D_uD3kapNWw

Amigas da Terra Brasil na 10ª Sessão de Negociações por um Tratado Vinculante

🌎✊🏽 Estamos em Genebra (Suíça), na 10ª Sessão de Negociações por um Tratado Juridicamente Vinculante sobre Direitos Humanos e Empresas Transnacionais junto à ONU, que começou nesta segunda-feira (16) e vai até sexta-feira (20). Nessa rodada de negociações temas medulares sobre o tratado serão debatidos, e a pressão popular e por nossas demandas históricas é imprescindível.

Após decisão arbitrária do presidente do grupo de trabalho quanto à pauta, que em setembro deste ano remarcou as negociações um mês antes da data prevista (outubro), minando a participação de muitas pessoas que haviam se organizado para marcarem presença em Genebra. Estamos novamente junto a movimentos sociais e organizações populares para fazer valer nossas vozes e garantir #direitosparaospovos e #regrasparaempresas. Seguiremos firmes para não deixar que este processo seja cooptado ou esvaziado.

🚩 Letícia Paranhos, presidenta da Amigas da Terra Brasil e co-facilitadora da Campanha Global para Recuperar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Acabar com a Impunidade, fala sobre o Tratado Vinculante, a importância desta rodada de negociação e como projetos de lei a nível nacional, como o PL 572/22 do Brasil, somam na construção de um Tratado que realmente considere a primazia dos direitos humanos sobre o lucro. 

Confira o vídeo: 

É preciso dar um basta na impunidade das grandes empresas e transnacionais, que com o verniz de “responsabilidade corporativa” e “sustentáveis” corroem as condições de vida da classe trabalhadora, os direitos humanos, dos povos e dos territórios, causando danos irreversíveis na natureza. Seguimos na luta por um Tratado Vinculante que torne possível corrigir a assimetria de poderes entre empresas transnacionais e comunidades afetadas, proporcionando pôr fim a uma arquitetura da impunidade corporativa internacional.

🔗 Saiba sobre as nossas propostas na “Cartilha Laranja: Fronteiras para um Tratado Vinculante Juridicamente Efetivo”

Musk e X não estão acima de todos: a impunidade das big techs

Nos últimos meses, acompanhamos o duelo de poder entre Elon Musk e o STF (Supremo Tribunal Federal). O empresário, dono de uma das maiores plataformas de big tech do mundo, a X, decidiu ter uma queda de braço com o Ministro Alexandre de Moraes, chegando inclusive a suspender o serviços da plataforma no Brasil. Longe de ser apenas uma batalha de egos, o caso expõe os riscos democráticos da concentração de poder nas mãos das empresas transnacionais.

Articulação internacional de organizações e movimentos sociais tenta, há 10 anos, criar um Tratado Vinculante junto à ONU para responsabilizar as empresas transnacionais. Crédito: Reprodução/Dismantle Corp Power

De acordo com pesquisas desenvolvidas pelo Center for Countering Digital Hate, a plataforma X tem sido o epicentro da desinformação. Recentemente, durante as eleições nos EUA (Estados Unidos), as postagens de Elon Musk têm atingido milhões de seguidores, influenciando nos resultados eleitorais. Da mesma forma, pesquisas apontam a relação entre o comportamento extremista de Musk e as manifestações fascistas na Inglaterra.

As empresas transnacionais vêm concentrando poder político, econômico, social e cultural desde os anos 70. Possuem uma capacidade de adaptação às críticas sociais e ambientais, transformando-se cada vez mais em entes para além do Estado. Um marco regulatório internacional para essas pessoas jurídicas internacionais, que produzem em cadeias globais de valor, que especulam em mercados financeiros internacionalmente, não avança, de modo que se propaga a arquitetura da impunidade.

As big techs, como são conhecidas as empresas transnacionais da tecnologia, entre elas o X, Google, Meta e Amazon, movem um capital financeiro maior que o PIB (Produto Interno Bruto) de toda a América Latina; em número, são cerca de R$ 10 trilhões. O Google vem conseguindo implementar o monopólio da pesquisa online, sendo uma das plataformas de busca mais utilizadas em todo o mundo. A Meta, que além do controle de grandes redes sociais como Facebook, agora domina o WhatsApp, acumula uma base de dados e de informações de seus usuários maior que os mecanismos de vigilância estatais.

Com esse capital econômico, político e cultural, as big techs estão determinando que tipo de pensamento hegemônico reproduzir sobre a consciência das massas. Na América Latina, os efeitos eleitorais do uso dessas máquinas são desastrosos. Na Argentina, o papel que a plataforma X teve em influenciar a juventude com ideologias extremistas rendeu a vitória eleitoral a Javier Milei. Ou mesmo o papel que a Meta vem tendo para uso do Messenger do Facebook no atendimento de políticas de saúde e proteção para mulheres grávidas.

Estamos sendo vítimas de um novo tipo de colonialismo modernizante. As iniciativas de regulação, sobretudo da inteligência artificial, ainda patinam, e nem enfrentam o tema sobre a perspectiva da ameaça à soberania. No Brasil, projetos de lei como o PL das Fake News (n.º 2630/2020) estão completamente paralisados no Senado. Recentemente, o Ministério da Fazenda anunciou que apresentou um plano para regulação, visando um equilíbrio de mercado junto ao CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). De uma forma geral, projetos regulatórios, como as diretrizes da União Europeia, seguem apostando na boa vontade empresarial em autorregular-se.


Iniciativas que se contrapõe à impunidade

Desde 2014, tramita no Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), a formulação de um Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos, no qual se possa corrigir a assimetria de poderes entre empresas transnacionais e atingidos, possibilitando pôr fim a uma arquitetura da impunidade corporativa internacional. Ocorre que, ano após ano, o projeto vai sendo desidratado pela correlação de forças conservadoras no Conselho. Recentemente, o governo do Equador, país que está na Presidência do Grupo responsável pela elaboração do instrumento, sem qualquer diálogo, cancelou a sessão prevista para meados de outubro, apresentando final de dezembro como nova data para a agenda.

A manobra causou insatisfação popular. Mais de 300 milhões de pessoas da sociedade civil, movimentos sociais e centros de investigação reunidos na Campanha Internacional pelo Desmantelamento do Poder Corporativo e pela Soberania dos Povos lançaram um manifesto. No documento, apontam que o reagendamento favorece a participação de países do Norte Global em detrimento de países do Sul global, prejudicando, ainda, a participação de organizações e movimentos que já tinham comprometido seus orçamentos com passagens e hospedagens caras em Genebra, na Suíça, para as datas de outubro.

No Brasil, o projeto de lei n.º 572/2022, que propõe uma lei marco sobre direitos humanos e empresas, encontra-se parado na Câmara dos Deputados desde outubro de 2023.


Democratização dos meios de comunicação

Não existe democracia na comunicação realizada pelas big techs nas redes sociais. Os usuários dessas redes estão expostos a todo tipo de conteúdo misógino, racista, homofóbico, elitista, diariamente. Essas empresas não têm nenhum compromisso ético com as informações compartilhadas, ou mesmo mecanismos eficazes de remoção de conteúdos que remetem à violência, violação de direitos humanos e desinformação. Sequer, os consumidores desses veículos têm proteção contra o uso de seus dados pessoais.

Talvez, de todos os medos que possamos ter sobre um futuro do planeta dominado pelas empresas transnacionais, o controle das formas de pensar e a produção de hegemonia por estas big techs seja uma das maiores ameaças a qualquer projeto de futuro alternativo que possamos construir. Precisamos urgentemente nos libertar desse controle.

Supõe-se que o que diferencia nós, humanos, de outras espécies, seja a nossa capacidade de raciocinar. Certamente, uma habilitante em xeque diante do cenário de desinformação. Assim, para além da urgência de regulação das empresas transnacionais, sobretudo as big techs, em prol da defesa dos valores democráticos, talvez o mundo requeira um pouco mais de inteligência, racionalidade e humanidade às pessoas. Fica o convite para pensar para além dos 280 caracteres.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Edição: Nathallia Fonseca

* Artigo da ATBR publicado originalmente no site do jornal Brasil de Fato em 22/11/2024. Acesse neste link: https://www.brasildefato.com.br/2024/11/22/musk-e-x-nao-estao-acima-de-todos-a-impunidade-das-big-techs

Declaração da Campanha Global sobre a Sessão de Negociações por um Tratado Vinculante sobre Direitos Humanos e Empresas na ONU

 

TRATADO VINCULANTE SOBRE EMPRESAS TRANSNACIONAIS E DIREITOS HUMANOS: OS PAÍSES DO SUL GLOBAL BLOQUEIAM O MOVIMENTO DAS POTÊNCIAS FORTES CONTRA O PROCESSO!

 

 

Declaração da Campanha Global para Recuperar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Acabar com a Impunidade

Novembro de 2023

 

A 9ª sessão do Grupo de Trabalho Intergovernamental de Composição Aberta (OEIGWG, por sua sigla em inglês) para elaborar um Tratado Vinculante da ONU sobre Empresas Transnacionais (ETNs) e outras empresas de caráter transnacional com relação aos direitos humanos foi realizada em Genebra de 23 a 27 de outubro de 2023. Essa rodada de negociações representou um marco importante na luta contra a impunidade das ETNs por violações dos direitos humanos e do meio ambiente e foi concluída com uma mensagem clara: movimentos sociais, sindicatos, povos indígenas, comunidades afetadas e organizações da sociedade civil, juntamente com muitos estados do Sul Global, estão comprometidos em proteger esse processo dos interesses daqueles que insistem em colocar os lucros das empresas acima dos direitos dos povos e do planeta.

Como todos os anos, a Campanha Global para Recuperar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Acabar com a Impunidade (Campanha Global) organizou uma semana de mobilizações com atividades dentro e fora do prédio da ONU (veja a agenda abaixo). Com uma delegação de 73 pessoas vindas da Ásia, África, América Latina, Estados Unidos e Europa, os membros da Campanha Global participaram de sessões, organizaram eventos dentro da ONU, uma exposição de fotos e manifestações, comprometidos com a elaboração de um ambicioso Tratado Vinculante que reflita as necessidades e os interesses dos povos afetados pelas violações das ETNs.


Um novo bloco de países do Sul Global enfrenta a Presidência

A abertura da semana de negociações começou de forma combativa: por mais de quatro horas, um grupo de países do Sul Global rejeitou a tentativa da presidência de impor um texto ilegítimo como base para as negociações. Conforme destacado pelo Grupo Africano, que representa os 54 Estados africanos, a minuta atualizada do tratado emitida em julho de 2023 pelo Presidente do OEIGWG, o Embaixador do Equador, foi construída de forma não transparente e não inclusiva, adicionando e/ou excluindo elementos e disposições sem critérios ou argumentos claros. Por esses motivos, o Grupo Africano exigiu que a minuta atualizada fosse retirada da mesa e que a terceira minuta revisada anterior fosse retomada como base para as negociações. Além disso, conforme consistentemente contestado por países latino-americanos, como Cuba, Honduras, Venezuela, Colômbia e Bolívia, e estados asiáticos, como Paquistão e Indonésia, juntamente com o Grupo Africano, o novo rascunho proposto pelo presidente procurou impor ao Grupo de Trabalho um escopo de aplicação do Tratado Vinculante fundamentalmente diferente daquele determinado pela Resolução 26/9, o documento que estabelece o OEIGWG que rege esse processo desde 2014. Essa Resolução define que o escopo de aplicação desse Tratado deve se concentrar nas ETNs e em outras empresas de caráter transnacional.

A maior parte do Sul Global falou em alto e bom som: esse processo foi iniciado com o objetivo de preencher a lacuna na legislação internacional que permite que as empresas transnacionais violem os direitos humanos e ambientais com impunidade. A expansão do escopo do Tratado para regular “todas as empresas”, conforme proposto pelo presidente e defendido abertamente pelos estados do Norte Global e pelos representantes do setor corporativo, contradiz a intenção original do processo. Com base nessa proposta, o Tratado estabeleceria disposições comuns para regulamentar empresas com estruturas e atividades muito diferentes, o que não seria apenas injusto, mas também tornaria a implementação complexa e ineficaz.


As negociações sobre o texto avançam, fortalecendo a Resolução 26/9

No final, o Presidente conseguiu rejeitar a solicitação do Grupo Africano de voltar à minuta anterior; no entanto, a pressão dos Estados do Sul Global prevaleceu para, pelo menos, usar a minuta atualizada em sua versão com acompanhamento de alterações (que inclui os elementos que foram arbitrariamente removidos da versão do Presidente). Muitos estados do Sul Global, juntamente com as organizações e movimentos da Campanha Global, continuaram a denunciar essas manobras e a questionar as intenções por trás delas.

Apesar desse primeiro dia agitado, as negociações do rascunho revisado começaram com uma participação forte e construtiva, sem precedentes, de Estados comprometidos com o mandato da Resolução 26/9, tanto em número quanto em qualidade das intervenções. Graças a essa participação, disposições importantes foram reintroduzidas no texto da negociação, tais como: obrigações diretas para as empresas transnacionais; a primazia dos direitos humanos sobre os acordos de livre comércio e investimento; a importância de reconhecer e incluir o conceito de comunidades afetadas; a importância de estabelecer que as empresas transnacionais não apenas abusam dos direitos humanos, mas também os violam; e a necessidade de fortalecer as disposições para estabelecer a responsabilidade da empresa matriz ao longo das cadeias de valor e produção.

Durante os intensos dias de negociações que ocorreram nos últimos dias de outubro, esses Estados adotaram uma linha dura e se mantiveram firmes, se apropriando legitimamente de um processo do qual fazem parte e defendendo firmemente a Resolução 26/9.

Uma nova tentativa de golpe

Antes do final da semana de negociações, o presidente do Grupo de Trabalho colocou na mesa uma proposta que parecia uma manobra maliciosa: como conclusão da semana, ele propôs que o OEIGWG solicitasse uma nova resolução ao Conselho de Direitos Humanos com o objetivo de renegociar o mandato do processo, argumentando que havia falta de consenso e de recursos financeiros. Essa foi uma manobra com o único objetivo de inviabilizar o processo do Tratado Vinculante (vale a pena observar que, em julho de 2023, durante uma consulta do Grupo Ocidental, foi discutida uma proposta para “esclarecer” o mandato do OEIGWG por meio de uma nova resolução). A nova resolução proposta foi recebida primeiro com surpresa e depois com rejeição total pelos Estados presentes na sala, com exceção dos representantes dos Estados Unidos e da União Europeia. Graças a essa rejeição categórica de vários Estados, a proposta não foi aprovada.

O compromisso ativo do bloco de países do Sul Global, movimentos sociais, comunidades afetadas, povos indígenas, sindicatos e organizações da sociedade civil com o processo estabelecido pela Resolução 26/9 e com os direitos dos povos e do planeta pôs fim a essa tentativa de golpe do Presidente. A suposta “falta de consenso” que ele usou para justificar a necessidade de uma nova Resolução simplesmente não corresponde à realidade: mais de 60 Estados se manifestaram em uníssono sobre a clareza do escopo da Resolução 26/9, com foco nas ETNs e em outras empresas de caráter transnacional.

Após intensa negociação entre os Estados na manhã de sexta-feira, as conclusões oficiais da semana foram uma vitória retumbante para os defensores desse processo histórico. Não apenas a proposta de uma nova resolução, que durou pouco tempo, foi abandonada, como também foi reafirmada a importância de continuar as negociações de acordo com os objetivos e as disposições estabelecidos na Resolução 26/9. Além disso, os Estados concordaram com a importância de encontrar novos recursos financeiros para avançar nas negociações, inclusive por meio de consultas inter-sessões transparentes em que todos os Estados discutam e concordem democraticamente sobre como continuar o trabalho no Tratado. Pedimos que o Grupo de Trabalho se afaste dos debates e discussões informados por “especialistas”, dos quais já estamos fartos. Em vez disso, acreditamos que as vozes e experiências das pessoas e comunidades afetadas pelas violações das TNCs devem ser ouvidas e priorizadas, e que elas são os verdadeiros especialistas.

E agora?

Muitos desafios estão por vir. Sabemos que um Tratado Vinculante forte e eficaz mudará o desequilíbrio de poder predominante que permite que alguns lucrem com a desapropriação e a morte de outros. A rejeição inequívoca de uma nova resolução foi uma vitória retumbante para os estados do Sul Global e para a Campanha Global, e um verdadeiro desafio para as potências que buscam minar o Tratado e que não ficarão paradas diante desse resultado das negociações.

Essas tentativas constantes de boicotar e corroer o Tratado são a prova de que as ETNs e seus agentes usarão todas as suas forças para tentar impedir que esse processo avance. O setor corporativo, os Estados Unidos (que nunca ratificam tratados de direitos humanos) e a União Europeia (que ainda não tem mandato para negociar esse tratado) estão totalmente empenhados em destruir, ou pelo menos diluir, o processo. Outros países do Norte Global (Suíça, Israel, Japão, Austrália, Canadá), bem como alguns países do Sul Global subjugados aos interesses corporativos e imperiais do Norte, estão seguindo o mesmo caminho. A batalha por um Tratado Vinculante digno desse nome será, portanto, intensa.

Essas constantes tentativas de boicotar e corroer o Tratado são a prova de que as ETNs e seus agentes usarão todas as suas forças para tentar impedir que esse processo avance. O setor corporativo, os Estados Unidos (que nunca ratificam tratados de direitos humanos) e a União Europeia (que ainda não tem mandato para negociar esse Tratado) estão totalmente comprometidos em destruir, ou pelo menos diluir, o processo. Outros países do Norte Global (Suíça, Israel, Japão, Austrália, Canadá), bem como alguns países do Sul Global subjugados aos interesses corporativos e imperiais do Norte, estão seguindo o mesmo caminho. A batalha por um Tratado Vinculante digno desse nome será, portanto, intrincada e não isenta de armadilhas e obstáculos.

Olhando para o futuro, a Campanha Global continua totalmente comprometida com o Tratado Vinculante, unindo as necessidades e aspirações dos movimentos, sindicatos e comunidades afetadas com a redação jurídica de um Tratado capaz de mudar o mundo como o conhecemos. Fazemos eco aos apelos dos Estados do Sul Global por transparência e por uma metodologia clara capaz de gerar consenso para as negociações, e não de impor caprichos.

Por fim, denunciamos a crescente securitização do espaço da ONU. De um fórum que supostamente busca proteger e promover os direitos humanos, ele se tornou, na prática, um espaço que criminaliza expressões de solidariedade e dissidência e exacerba vulnerabilidades. Agora é um espaço que ironicamente ignora as múltiplas estratégias que aqueles de nós que defendem os direitos humanos têm o direito de utilizar. As tentativas de silenciar o apoio à Palestina foram frequentes durante toda a semana, apesar do genocídio que se desenrola diante de nossos olhos.

A manifestação em frente à Broken Chair na segunda-feira, 23 de outubro, co-organizada pela Campanha Global, mostrou que o poder do povo pode ressoar na sala de negociações. Ela mostrou que não se pode brincar com a Resolução 26/9. Como Paula Goes, do Movimento dos Atingidos por Barragens do Brasil, declarou em nome da Campanha Global:

“A Resolução 26/9 é uma vitória histórica, resultado de anos de luta de milhões de pessoas cujos direitos humanos são sistematicamente violados por corporações transnacionais. Esse processo é, portanto, um mandato para aqueles que foram assassinados em Marikana por terem feito greve para exigir melhores condições de trabalho na Lonmin; para as crianças indígenas que estão morrendo de câncer no Equador por causa dos vazamentos de petróleo da Chevron; para as trabalhadoras assassinadas em Rana Plaza e para os milhões de pessoas atualmente presas em Gaza e submetidas a um genocídio diretamente auxiliado e incentivado por empresas transnacionais”.

As memórias dos nossos povos exigem responsabilidade e justiça para as violações dos direitos humanos cometidas pelas empresas e, graças aos esforços de muitos Estados, da Campanha Global e de seus aliados, essa possibilidade continua em nossas mãos. Ao marcarmos uma década dessa luta no próximo ano, estaremos marchando mais fortes e mais comprometidos do que nunca.

 

Atividades da Semana de Mobilizações 2023:

Segunda-feira, 23 de outubro

Evento paralelo: “Como o Tratado Vinculante pode apoiar o trabalho parlamentar para defender os Povos e o Planeta contra as violações das ETNs?”

Vídeo: https://justice5continents.net/fc/viewtopic.php?t=1155

Manifestação: Dance pela mudança, mova a cadeira

 

Terça-feira, 24 de outubro 

Evento paralelo: “Tribunal do Povo: Empresas transnacionais em julgamento”.

Vídeo: https://justice5continents.net/fc/viewtopic.php?t=1156

Exposição de foto-documentários da Assembleia de Mulheres Rurais

 

Quinta-feira, 26 de outubro

Evento paralelo: “Casos de violações de direitos humanos e destruição ecológica”.

Vídeo: https://justice5continents.net/fc/viewtopic.php?t=1157

 

Documentos úteis da Campanha Global:

 

Comunicado de Primeiras Impressões sobre o Projeto de Tratado Atualizado (setembro de 2023)

Fronteiras de um Tratado Efetivo (2023)

10 anos passados, 10 anos pela frente. A Campanha Global rumo a 2032 (2022)

Elementos-chave defendidos pela Campanha Global, com base nas experiências de resistência das comunidades afetadas pelas ETNs (2022)

Documento de elementos para um Tribunal Internacional sobre ETNs e Direitos Humanos (2022)

Proposta de Tratado sobre ETNs e Direitos Humanos (2017)

 

Para obter mais informações: https://www.stopcorporateimpunity.org/binding-treaty-un-process/

Negociações históricas na ONU revelam os vínculos entre a impunidade de empresas transnacionais e o imperialismo

O genocídio em Gaza marca a 9ª Sessão de Negociações nas Nações Unidas (ONU) em torno de um instrumento internacional juridicamente vinculante sobre empresas transnacionais e direitos humanos. 

24 de outubro de 2023, Genebra: 

Esta semana (do 23 ao 27 de outubro) os Estados membros das Nações Unidas retomam negociações históricas na 9ª Sessão de Negociações nas Nações Unidas (ONU), em Genebra, com o intuito de elaborar um instrumento internacional juridicamente vinculante para regular, no direito internacional dos direitos humanos, as atividades de empresas transnacionais. 

A participação constante de membros de comunidades afetadas pelas atividades de empresas transnacionais, organizações da sociedade civil, sindicatos e movimentos sociais faz com que este seja um dos processos com maior respaldo social na história de negociações de tratados em direitos humanos da ONU. A Campanha Global para Recuperar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Acabar com a Impunidade (Campanha Global | #StopCorporateImpunity), representando mais de 260 milhões de pessoas no mundo que sofrem abusos das empresas transnacionais, voltou a contribuir decisivamente nas negociações que estão ocorrendo em Genebra. 

Durante a abertura da sessão de negociações, um grande número de Estados bloqueou a adoção do programa de trabalho, devido às suas preocupações sobre o fracasso do novo documento em incorporar os seus pontos de vista e abordar o mandato central do tratado de se concentrar nas transnacionais. Esses estados também expressaram preocupações mais amplas em relação a metodologia nada democrática e pouco transparente do presidente do processo, o Equador. 

Especificamente, o grupo africano (representando os 54 estados africanos) tomou a iniciativa e foi apoiado por numerosos delegados de países do Sul Global, como Cuba, Bolívia, Venezuela, Paquistão, Irã e Arábia Saudita. A oposição foi tão forte que o presidente teve que suspender a sessão da manhã em busca de consenso, e só pode continuar depois de aceitar o uso de uma versão do texto com as mudanças que refletiam as propostas prévias dos Estados, que foram eliminadas de maneira injustificada. 

Os delegados da Campanha Global se somaram às preocupações de delegados governamentais durante a reunião. Leticia Oliveira, do Movimento de Atingidas por Barragens (MAB), do Brasil, e da Via Campesina, falando em nome do Instituto Transnacional representando a Campanha Global, disse: “É muito desanimador para todos na sala (e, acima de tudo, para todos que aqui representamos, tanto movimentos sociais quanto Estados), participar de um processo que não é transparente. Ontem, muitas delegações estaduais, que não por coincidência representam os territórios onde ocorre a maioria dos crimes corporativos, manifestaram preocupações sobre o processo e o conteúdo da minuta atualizada.” 

Mohammed Hakech, da Federação Nacional Marroquina de Sindicatos Agrícolas (FNSA), e da Vía Campesina, mencionou: “A presidência não tem autoridade para modificar o mandato deste Grupo de Trabalho se pretende alargar o âmbito de aplicação do projeto de tratado a qualquer tipo das empresa, quando deveria concentrar-se apenas nas empresas transnacionais. Mas, na verdade, foi isso que a Presidência fez. O documento apresentado não terá nenhum impacto na impunidade das empresas transnacionais ou da sua cadeia de valor. Também não contribuirá para a restauração da soberania popular e estatal, prejudicada pelo poder destas entidades, nem para o acesso à justiça para as vítimas.” 

7 delegados [lista abaixo] da Rede Interparlamentar Global (GIN) , uma rede de mais de 200 Membros do Parlamento que apoiam as negociações do Tratado Vinculante da ONU, participaram das negociações e organizaram um evento na ONU expondo os desafios que as empresas colocam ao seu trabalho como representantes eleitos e responsáveis políticos. Em uma declaração compartilhada, eles declararam:  

“O objetivo deste Tratado Vinculante é pôr fim às deficiências jurídicas globais existentes e garantir que as empresas transnacionais sejam responsabilizadas, e acabar com a impunidade que ocorre a nível global e local, direta ou indiretamente, com as suas empresas afiliadas e subsidiárias, que devem responder por atos que ameacem os direitos das pessoas, dos povos indígenas e das comunidades locais, dos territórios e do meio ambiente.”

Quando a sessão de segunda-feira (23) chegou ao fim, representantes das comunidades afetadas e ativistas de todo o mundo reuniram-se em frente ao Palácio da ONU, onde ativistas subiram ao topo do lendário monumento Broken Chair (Cadeira Quebrada) para erguer uma faixa gigante com o slogan: “Direitos dos Povos, Regras para Corporações”. Líderes de comunidades em África, Ásia, América Latina e Europa deram voz às suas experiências com empresas transnacionais que violam os direitos humanos, atacam defensores destes e sindicalistas e destroem meios de subsistência. Muitos ativistas expressaram a sua solidariedade com o povo palestino, usando bandeiras ou lenços (Keffiyeh), ligando a luta global contra a impunidade das empresas transnacionais com o genocídio em Gaza.

O genocídio em curso em Gaza foi um tema recorrente e central das negociações da ONU, e tanto os oradores do Estado como da sociedade civil relacionaram as violações dos direitos humanos ocorridas em Gaza com o trabalho para responsabilizar as transnacionais em matéria de direitos humanos.  Wesam Ahmad, do Centro Al-Haq de Direito Internacional Aplicado, apontou durante o discurso de abertura que: “Aos defensores iniciais deste processo de tratado, incluindo muitos no grupo africano e latino-americano, não deve passar despercebido que as mesmas empresas historicamente envolvidas no sofrimento do seu povo, estão hoje desenvolvendo interesses nos campos de gás natural do Mar Mediterrâneo, enquanto os fabricantes de armas lutam para satisfazer a demanda e se desenvolvem novas rotas comerciais”. A devastação em Gaza não é isolada; é um sintoma de um problema maior – um sistema onde as corporações transnacionais se beneficiam da opressão, dos assassinatos e da destruição apoiando ambições imperiais.”

Associações empresariais, representando milhões de transnacionais e o seu poder de influência neste processo, também estiveram presentes nestas negociações.  

Representantes da Câmara de Comércio Internacional, da Organização Internacional de Empregadores e do Conselho dos EUA para Negócios Internacionais participaram nas negociações, apelando a uma abordagem “colaborativa”. No entanto, estas intervenções e participação da indústria no processo foram veementemente criticadas por representantes da sociedade civil que defendem o tratado. Como disse Erika Mendes da Ja!, Amigos da Terra Moçambique e Amigos da Terra Internacional (Foeint): “A interferência corporativa neste processo é um dos principais obstáculos à garantia de um tratado forte que defenda os direitos humanos e as comunidades em todo o mundo. A interferência constante de frentes corporativas neste processo faz parte de uma tentativa de normalizar a captura corporativa na elaboração de políticas – desde as nossas capitais nacionais até aos corredores das Nações Unidas. É por isso que a sociedade civil que apoia este tratado tem sido unânime desde o início do processo sobre devermos proteger estas negociações, e a implementação do tratado, da captura corporativa.”

O que está evidente desde os dois primeiros dias de negociações é que existe uma força crítica crescente, de governos e da sociedade civil, que está empenhada em garantir um tratado que defenda os direitos humanos, que acabe com a impunidade de empresas transnacionais, e que proporcione acesso à justiça às comunidades em todo o mundo.

Com a contínua violação de direitos humanos e destruição do meio ambiente, não há mais tempo a perder.

Confira fotos do ato na Broken Chair na galeria: 

Conteúdo originalmente publicado na página da Campanha Global, em: https://www.stopcorporateimpunity.org/press-release-historical-negotiations-in-the-un-unveil-linkages-between-transnational-corporate-impunity-and-imperialism/  

 

As negociações de um Tratado sobre empresas transnacionais e direitos humanos na ONU

 

Em 1972, Salvador Allende faz um discurso histórico na Assembleia Geral das Nações Unidas sobre o acúmulo de poder nas mãos de empresas transnacionais. Naquele momento, países reunidos no projeto político do Terceiro Mundo disputavam os sentidos políticos das Nações Unidas e contestavam a presença das desigualdades sociais e do colonialismo, permitindo o avanço de iniciativas para regulação das empresas transnacionais.

Assim como Allende caiu no golpe de 1973, os demais governos progressistas foram sufocados pelo avanço da onda neoliberal no mundo. Na América Latina, a crise da dívida externa foi asfixiando as economias nacionais e estrangulando governos. Com isso, os espaços do multilateralismo foram cada vez mais ocupados pelo imperialismo norte-americano.

Já em 1999, havia um consenso do papel que as corporações tinham no rumo do desenvolvimento, firmado no Pacto Global. Esse foi apenas o primeiro passo na colonização do imaginário das empresas como atores-chave do desenvolvimento. Dessa forma, expandiu-se a crença de que as empresas transnacionais já não seriam parte do problema das violações aos direitos humanos, mas que teriam as soluções a elas. Por isso, a aposta por mecanismos de voluntariedade ao invés de marcos normativos que responsabilizem as empresas.

Em 2011, esse ideal se consolidou com a edição dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, o chamado Marco Ruggie. Somente em 2014, com a presença de governos progressistas na América Latina no Equador, Bolívia, Venezuela, e na África, especialmente na África do Sul, retoma-se as críticas à atuação das empresas transnacionais. O resultado foi a aprovação da Resolução 26/9 que cria o Grupo Intergovernamental para a construção de um Tratado Juridicamente Vinculante sobre Empresas Transnacionais.

Entre as várias sessões, incluindo ofensivas de boicote, chegamos na 9ª reunião do Grupo de Trabalho, que acontece nesta semana. Dessa vez, é a presidência do grupo, o Equador, que conduz, de maneira arbitrária e sem transparência, para o esvaziamento do conteúdo do texto. Nos últimos anos, o Equador tem cumprindo o papel de retirar conteúdos considerados pelos movimentos sociais e comunidades atingidas como fundamentais para a proposta, tais como a previsão de obrigações diretas às empresas transnacionais pelas violações aos direitos humanos; o foco nas empresas transnacionais; a previsão de uma Corte Internacional. Em sua última movimentação, apresentou um novo borrador para a negociação no qual, de forma antidemocrática, aceita sugestões de determinados países e exclui de outros, sem qualquer justificativa.

Segundo a Campanha Global pelo Desmantelamento do Poder Corporativo e pela Soberania dos Povos, é preciso focar na atuação das empresas transnacionais, as quais são responsáveis por gerir uma escala global de impunidade, não havendo normas internacionais que as responsabilize. Essas empresas se beneficiam da falta de normativas para promover uma violação estrutural aos direitos humanos. Para a Campanha, é importante inverter a lógica atual do lucro sobre a vida, afirmando a primazia dos direitos humanos frente aos acordos comerciais e de investimento e ao direito econômico. Os anos de voluntariedade não produziram modificações na efetivação dos direitos humanos. Empresas seguem violando, mesmo com suas certificações, relatórios de sustentabilidade, diretrizes e mecanismos de devida diligência. Assim, é preciso equiparar as forças, por isso, avançar para regras para empresas transnacionais.

Movimentos populares e a sociedade civil brasileira estão interessados em visualizar as posições do governo brasileiro. Até agora, o Brasil compôs o Grupo sem apresentar contribuições relevantes às negociações. Inclusive, nos anos pós-golpe e de governo Bolsonaro, a postura foi de cerceamento da presença e atuação da sociedade civil durante as negociações. Além de comentários vexatórios sobre aspectos de gênero no texto. Existem altas expectativas, que durante o Governo Lula, o país possa ter uma postura mais atuante, tanto na abertura para construção com a sociedade civil como num texto que supere a arquitetura da impunidade corporativa efetivamente.

Recentemente, o Ministério das Relações Exteriores recebeu lideranças da Campanha Global e suas propostas para o Tratado. Continua, em aberto, quais delas serão incorporadas nas negociações, e como o ministério dará continuidade aos diálogos com as comunidades, a sociedade civil e os movimentos populares.

No cenário nacional, o Ministério dos Direitos Humanos tem realizado debates sobre o PL nº.572/2022, que versa sobre direitos humanos e empresas, sinalizando a importância de avançar em marcos normativos. Muito embora sua gestão ainda seja marcada por um intenso diálogo com mecanismos como o Pacto Global e empresas. Resta saber qual será a postura do ministério e como influenciará nas negociações do Tratado.

As atuações do governo em espaços internacionais repercute com falas históricas sobre o combate às desigualdades, a preservação do meio ambiente, a proteção dos povos indígenas e comunidades tradicionais, bem como a aproximação Sul-Sul. Vale ressaltar, nas últimas semanas, o papel desempenhado pelo Brasil na busca por um cessar-fogo na faixa de Gaza, dentro do Conselho de Segurança da ONU.

E sobre esse tema, não podemos deixar de mencionar que dentre as principais empresas transnacionais está a indústria armamentista, uma das maiores consumidoras de minerais, por exemplo. Há tempos, campanhas como a do Movimento BDS denunciam a atuação dessas corporações nos territórios ocupados. No caso da Palestina, empresas como G4S, de Israel, utilizam o conflito como laboratório de práticas, que depois serão vendidas para gestão de presídios, construção de muros e empresas de segurança privada. Dificilmente, essas empresas são responsabilizadas pelo seu papel nos conflitos.

Inclusive, a Palestina é uma das nações mais aguerridas na defesa dos direitos dos povos nas negociações do Tratado. Em 2022, a representação Palestina defendeu firmemente a participação da sociedade civil e a continuidade das negociações sobre o texto acumulado ao longo dos anos. Em meio à grave situação de violência humanitária de Israel contra a Palestina, certamente este será um tema que virá à mesa na 9ª Sessão; esperam-se manifestações de solidariedade internacionalista das organizações presentes, assim como as discussões das transnacionais de segurança na Palestina.

Recordamos a Resolução 31/36 do Conselho de Direitos Humanos da ONU, que determinou um estudo sobre a atuação de empresas na faixa de Gaza, e os resultados corroboram com sua cumplicidade com esse crime contra o povo palestino. No entanto, o sistema internacional de proteção aos direitos humanos segue fazendo vista grossa à Israel, por pressão dos EUA (Estados Unidos).

Regular o poder corporativo é uma necessidade para continuidade das formas de vida na Terra, sejam humana, animal, vegetal. As corporações, em sua regulação privada, não conseguiram superar os problemas que elas mesmas causam. Esse caminho já foi experimentado e não deu resultados. É hora e momento de experimentarmos uma via de controle e de responsabilização, sob pena de nos aprofundarmos ainda mais nas mazelas do capitalismo.

Direitos para os povos, regras para as empresas!

Edição: Rodrigo Durão Coelho

* Artigo publicado originalmente em https://www.brasildefato.com.br/2023/10/25/as-negociacoes-de-um-tratado-sobre-empresas-transnacionais-e-direitos-humanos-na-onu

Tratado Vinculante internacional na ONU e PL 572/2022 no Brasil: a luta para responsabilizar empresas transnacionais por seus crimes


Nas últimas décadas, o neoliberalismo impôs ao mundo uma profunda desregulamentação,
promovendo o desmonte de políticas públicas sociais gestadas pelo Estado para as populações mais empobrecidas, e a ampliação dos negócios das empresas transnacionais do centro do sistema capitalista, no Norte global, para todos os continentes. Comunidades, as populações nos países e trabalhadores tiveram direitos retirados e são constantemente desrespeitados; territórios e meio ambiente foram e ainda são explorados e, muitas vezes, destruídos. Tudo para que as grandes corporações continuem lucrando muito.

Esse processo foi intenso em países da periferia do sistema capitalista, os do Sul Global, onde está o Brasil, que sofre com a superexploração e genocídios em larga escala, enquanto os países centrais seguem enriquecendo. Para atender aos interesses das transnacionais, criou-se uma série de mecanismos econômicos, jurídicos e governamentais que protegem as operações dos investidores. Entre eles estão os acordos de livre comércio, tratados de proteção ao investimento e mecanismos de resolução de litígios entre investidores e Estados. Ao mesmo tempo, não existem marcos normativos internacionais e nem no Brasil que responsabilizem as grandes corporações pelos crimes e violações que cometem. Essa engrenagem é o que chamamos de arquitetura da impunidade, criada para proteger os lucros das empresas transnacionais (ao custo da vida das pessoas e do meio ambiente saudável) e evitar que as corporações sejam punidas em sua busca incessante por dinheiro e poder.

Por isso se discute, desde os anos 1970, junto à Organização das Nações Unidas (ONU), a proposta de um Tratado Vinculante de Direitos Humanos e Empresas que responsabilize as empresas transnacionais, faça a reparação integral às comunidades e povos atingidos e promova garantias para evitar que as corporações repitam seus crimes. Mas somente em 2014, após décadas de luta da sociedade civil articulada na Campanha Global para Desmantelar o Poder Corporativo, Reivindicar a Soberania dos Povos e Pôr fim à Impunidade, conseguimos que o Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) criasse um Grupo de Trabalho Intergovernamental de Composição Aberta (OEIGWG) para negociar e redigir um Tratado Vinculante internacional para responsabilizar, de fato, as empresas transnacionais.

É verdade que a ONU já tinha dado alguns passos nesse debate sobre Direitos Humanos e Empresas três anos antes, em 2011, quando adotou os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, mas consideramos insuficientes. Essa diretiva é baseada no voluntarismo empresarial. Ao longo dos anos, foram se consolidando, nos países, marcos baseados nesses princípios, como os Planos Nacionais de Ação e, mais recentemente, a devida diligência, processo em que as próprias empresas devem tomar medidas para evitar (e, caso ocorram, para mitigar) danos ambientais e às comunidades em consequência de suas atividades econômicas. O que não acontece, e quando ocorre, é de forma injusta, sem reparar os prejuízos das populações e dos países atingidos.

Aqui no Brasil, vivenciamos situações que comprovam que o voluntarismo empresarial não funciona. Em Novembro, completará 8 anos do rompimento da barragem de rejeitos de mineração em Mariana, em Minas Gerais, e os atingidos brigam até hoje pela devida responsabilização das mineradoras e empresas envolvidas na atividade. Além disso, as mineradoras não revisaram suas medidas de prevenção e de segurança, e a tragédia de Mariana, em 2015, repetiu-se quatro anos depois com o rompimento da barragem de rejeitos na cidade de Brumadinho (MG), que teve impacto ainda maior. Os dois crimes envolvendo as empresas VALE, Samarco e BHP Billiton resultaram em quase 300 pessoas mortas e comunidades e meio ambiente destruídos. Outras situações também são marcadas pela impunidade, como o despejo forçado de moradores para a ampliação do aeroporto em Porto Alegre (RS) pela empresa alemã Fraport e os inúmeros casos de trabalho precarizado em todo o país praticado por empresas que, inclusive, integram o Pacto Global da ONU no Brasil.

A Campanha Global e nós, Amigas da Terra Brasil, apostamos no Tratado Vinculante internacional junto à ONU para responsabilizar as empresas transnacionais por seus crimes socioambientais, garantindo as indenizações necessárias e resguardando os direitos das comunidades atingidas em todo o mundo. Apenas um mecanismo sério e efetivo de cobrança, que convoque as partes envolvidas a responder por seus atos, pode impedir que os direitos dos povos sejam desrespeitados, promovendo a vida.

A Campanha Global construiu uma proposta de texto para o Tratado Vinculante, o Tratado Azul, que foi entregue ao GT Intergovernamental da ONU em 2017, o qual se contrapõe aos marcos voluntaristas por priorizar os direitos humanos acima de qualquer acordo de comércio ou de investimento (o que se chama de primazia no Direito Internacional). A proposta da sociedade civil aborda essa questão diretamente na economia, no que se refere às cadeias globais de produção das indústrias e empresas, e na Justiça nos tribunais dos países, sugerindo até mesmo a instituição de um Tribunal Internacional de Corporações Transnacionais e Direitos Humanos com a competência para receber, investigar, julgar e executar decisões.

As organizações da Campanha Global também buscam o apoio de parlamentares de seus países para o estabelecimento do Tratado Vinculativo junto à ONU. Até o momento, conseguiram a adesão de 246 parlamentares; desses, 14 são brasileiros.

No final de Outubro, entre os dias 23 a 27, estaremos participando da 9ª Sessão de Negociações na sede da ONU em Genebra, pressionando para que o tratado avance realmente. Acompanhe o site e as redes sociais da Amigas da Terra Brasil para mais informações 

Um Tratado Vinculante internacional poderia até mesmo contribuir em responsabilizar as empresas transnacionais que financiam e acabam perpetuando a violação de direitos humanos em território palestino, como explica Andressa Soares, do Movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções):


PL 572/2022 quer responsabilizar empresas nacionais e estrangeiras por direitos violados no Brasil 

Ao mesmo tempo em que pressionam pelo Tratado Vinculante em nível internacional, as organizações que compõem a Campanha Global articulam a criação de leis nacionais para reforçar o tratado junto à ONU. No Brasil, foi protocolado, no ano passado, o Projeto de Lei 572/2022, que cria a lei marco nacional sobre Direitos Humanos e Empresas e estabelece as diretrizes para a promoção de políticas públicas sobre o assunto. O PL foi apresentado pelos deputados federais na época Helder Salomão (PT/ES), Áurea Carolina (PSOL/MG) e Fernanda Melchionna (PSOL/RS), articulado com organizações e movimentos sociais, pesquisadores, universidades, assessores jurídicos populares, ambientalistas e comunidades atingidas, especialmente de Mariana e Brumadinho (MG). 

Atualmente, o PL 572/22 tramita na Câmara dos Deputados. Se aprovado no Congresso Nacional, será a primeira lei com este teor em todo o mundo. A lei marco avança para a responsabilização de empresas nacionais e estrangeiras com atuação no país por violações aos direitos humanos, reconhecendo obrigações ao Estado e às mesmas, e estabelecendo, ainda, medidas de prevenção, monitoramento e reparação, bem como direitos às populações atingidas.

A aprovação do PL 572/22, um projeto constituído a partir dos atingidos pelas violações de direitos, também questionaria a arquitetura da impunidade e o poder corporativo das grandes empresas, que precisam urgentemente ser desmantelados.

A presidenta da Amigas da Terra Brasil, Letícia Paranhos, participou de um seminário virtual promovido pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) sobre o PL. E em breve estará nas negociações da ONU, em Genebra, sobre o Tratado Vinculante. Confira sua manifestação no seminário no vídeo abaixo e saiba mais sobre a importância do projeto de lei e de um Tratado Vinculante para garantir direitos para os povos e regras para as empresas: 

Amigas da Terra Brasil

‘Não basta nos unirmos, devemos caminhar juntos’: pensar a integração e a soberania dos povos

 

As últimas semanas têm sido intensas na relação entre o governo e o Congresso Nacional. A direita se mostrou muito bem organizada na Câmara dos Deputados e disparou uma ofensiva contra o governo na aprovação de mudanças na estruturação dos ministérios, especialmente no esvaziamento das competências dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas. O clima do Congresso esquentou a pressão sobre o governo federal, exigindo maior concessão de espaço político para a direita conservadora. A bancada progressista enfrentou inúmeros desafios para barrar retrocessos, sofrendo derrotas na votação.

O ataque também ocorreu contra os movimentos e organizações populares. Isso se deu por meio da aprovação de duas Comissões Parlamentares de Inquérito: a do MST e a das ONGs, por meio das quais a direita pretende desgastar a imagem da luta social. Não podemos deixar de mencionar ainda a aprovação do PL 490/2007, que trata da tese do marco temporal para demarcação dos territórios indígenas na Câmara Federal. O projeto promove uma verdadeira destruição dos direitos constitucionais dos povos indígenas aos seus territórios.

A direita e as elites brasileiras não querem perder suas margens de lucro e pretendem desgastar a imagem do governo, inviabilizando que as propostas de campanha de Lula sejam implementadas. Isso nos coloca em um movimento mais amplo de resistência ao neoliberalismo em nossa região. Desse modo, a derrota das forças conservadoras está intimamente articulada às lutas anti-imperialistas. Em um contexto de intensa disputa da hegemonia global, as potências imperialistas buscam reforçar o domínio sob a região latino-americana e caribenha, impedindo que uma nova onda progressista se fortaleça. Assim, a elite brasileira não pretende abrir mão de seus privilégios e distribuir o mínimo de direitos, por isso está alinhada com os interesses das empresas transnacionais e das potências colonialistas, é comprometida com um projeto político de continuidade da extração de valor da nossa região para os países do capitalismo central.

Obviamente que as lideranças políticas da região estão atentas às movimentações do cenário internacional. Por isso, Lula convocou, na última semana, o “retiro” de presidentes da região, em Brasília. No centro da discussão, estiveram propostas de cooperação e de integração da América do Sul. Em Carta Final,  os chefes anunciaram promover uma cooperação voltada à superação das vulnerabilidades e manter um calendário de encontros. Na oportunidade, Pepe Mujica, liderança uruguaia, enviou uma carta a Lula sugerindo que os erros do passado não se repitam e que sejam construídos projetos de integração com os povos, conclamando que os líderes não apenas estejam unidos, mas caminhem juntos.

Jornadas Continentais: um lugar para repensar a integração regional

Nos anos 90, os povos organizados da América Latina resistiram ao Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA), que determinava o aprofundamento da subordinação dos países da região ao imperialismo norte-americano. Essa articulação venceu a iniciativa de aprofundamento da dependência, deixando um legado de organização popular e de integração de mobilizações que alimentou as lutas populares.

Em 2015, inspirados nessa luta, se funda a “Jornada Continental pela Democracia e contra o Neoliberalismo” em Havana, em Cuba. A Jornada Continental é composta por diversos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, que têm construído lutas locais, regionais e globais como frentes ao avanço do neoliberalismo, dos ataques à democracia e da retirada dos direitos dos povos da América Latina e do Caribe.

Reunidos em Brasília na semana passada, movimentos e organizações fizeram um balanço das jornadas. Para Nalu Farias, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), o avanço da direita na desestabilização da democracia trouxe muitas reflexões e aprendizados à esquerda, num cenário mais difícil “porque estávamos num contexto mundial de agudização do contexto capital x vida, em que cada vez mais esta ganância, esta força extrativista, neocolonial, se impunha com mais força, com muita perseguição aos movimentos e lideranças”, aprofundando, opinou ela, uma racionalidade conservadora.

Juma Xipaia, secretária de Articulação e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas, também esteve presente na reunião. Ao abordar sobre os ataques aos direitos indígenas, afirmou: “nós jamais vamos recuar, abaixar a cabeça. Jamais iremos negociar os nossos direitos, tampouco os territórios”. A liderança convidou a refletir sobre a integração latino-americana e do Caribe na percepção de como “tudo está conectado”, explicando que as barreiras, fronteiras e delimitações territoriais são uma criação que podemos transcender.

Na mesma esteira da ancestralidade, Juan Almendares, da Amigos da Terra Honduras, refletindo sobre o bloqueio político e econômico da Venezuela, Nicarágua, Cuba e Honduras, aponta um caminho de luta que envolve ciência, poesia, técnica e ética, sobretudo uma ética de consciência anticapitalista e anti-imperialista. Para ele, em nossa região, as respostas aos nossos problemas podem ser encontradas em nosso passado ancestral.

Um dos temas de ênfase da articulação foi o enfrentamento ao poder corporativo. As organizações integrantes da Jornada estão envolvidas na construção de marcos normativos vinculantes para responsabilização das empresas transnacionais pela violação aos direitos humanos, como o Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos junto ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), e o PL nº. 572/2022, que cria a lei marco brasileira sobre direitos humanos e empresas.

 


Em Brasília, Jornada Continental entregou, ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil, as demandas dos povos por um instrumento que possa acabar com a impunidade corporativa / Edgardo Mattioli/Radio Mundo Real

 

Aproveitando a presença em Brasília, a Jornada mobilizou os parlamentares brasileiros para aderir a este movimento global. No âmbito internacional, existe a Rede Interparlamentar Global (GIN, sigla em inglês), na qual se engajam parlamentares comprometidos com a perspectiva de responsabilização das corporações. Na semana passada, 10 parlamentares brasileiros ingressaram na rede. Sobre a rede, Reginete Bispo, deputada federal pelo Rio Grande do Sul (RS), mencionou: “o capitalismo transnacional tem como base a supremacia. O centro do ataque somos mulheres negras e povos originários. Vamos nos articular e construir a integração regional para defender os povos indígenas, quilombolas e as mulheres da periferia”.

A Jornada Continental, em sua proposta política, entende que a integração e a cooperação regional devem ser pensadas a partir das necessidades dos povos para viver com dignidade, como o acesso à saúde, educação, trabalho e infraestrutura. Em suas declarações, defende a importância de investimentos públicos em projetos alternativos de desenvolvimento, de bases mais solidárias e cooperativas, que atendam à preservação das formas de produção da vida integradas a um respeito aos bens comuns, como as formas de viver dos povos indígenas.

Na Declaração final do encontro da Jornada, os movimentos destacam a importância da reunião da cúpula do poder da região em Brasília. Segundo a carta, vivemos um momento em que a retomada institucional de um projeto de integração regional, de organização da resistência à ofensiva conservadora, está no centro da agenda política. No entanto, o envolvimento das bases, dos povos, no processo será decisivo para os rumos, tal como as palavras de Pepe Mujica: “não há cúpulas sem montanhas nas quais se apoiar, e essas montanhas são os povos”.

Por muito tempo, as montanhas foram o habitar das forças de resistência às ditaduras e aos autoritários, atuaram como espaços da gestação de projetos de libertação regional. Este movimento promoveu uma junção simbólica entre povos e montanhas. Assim, na esteira de Mujica, se queremos que nos próximos anos as Cúpulas atuais estejam no poder, que não tenhamos que enfrentar novos movimentos fascistas na região, precisamos trabalhar na construção sólida das montanhas, tendo uma base popular que sustentará as transformações urgentes e necessárias que precisamos.

*Conteúdo publicado na íntegra no Jornal Brasil de Fato, em https://www.brasildefato.com.br/2023/06/07/nao-basta-nos-unirmos-devemos-caminhar-juntos-pensar-a-integracao-e-a-soberania-dos-povos

Encerramento do Seminário Direitos Humanos e Empresas conta com o lançamento de cartilha popular sobre o PL 572/22

Material aborda a arquitetura da impunidade praticada por empresas e explica a importância do PL 572/22 na primazia dos direitos humanos sob a lógica dos negócios

A violação de direitos humanos, dos povos e da natureza é uma prática constante e estrutural das transnacionais e das empresas. Para obterem lucros, elas externalizam os custos para a realidade cotidiana das pessoas, via a exploração de seus trabalhos e territórios. Processo que se intensifica na relação geopolítica global, fazendo com que países da periferia do sistema capitalista, o sul global, lidem com a superexploração, o etnocídio, o ecocídio e o genocidio em larga escala. E nessa relação desigual, os países do centro do sistema capitalista acumulam historicamente riquezas. Do lado de cá, se contam os corpos. Sejam de entes queridos, de amigos, de companheiros de luta, sejam os corpos dos rios e das florestas. 

Os impactos socioambientais da impunidade corporativa são alarmantes. Situação que fica evidenciada por casos como o do afundamento de cinco bairros de Maceió, devido à mineração de sal-gema da Braskem. Cerca de 60mil pessoas atingidas, milhares em situação de deslocamento obrigatório. O que chamavam de lar, já não pode mais ser. Os vínculos com o território foram dilacerados pela ganância da empresa, que impôs o risco de morte como imperativo diário de quem morava na região. Há ainda os crimes da Vale, BHP e Samarco, com inúmeras violações de direitos no rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais. Situações que traduzem a falta de responsabilização das empresas, de ação efetiva do estado, e, principalmente, a violação dos direitos das comunidades atingidas. Situação exposta também no recente caso de trabalho escravo em três vinícolas da Serra Gaúcha: Salton, Aurora e Garibaldi. 

É evidente que existe uma assimetria de poder entre pessoas e transnacionais. Enquanto grandes empresas e transnacionais seguem aumentando os lucros, ano a ano, não há uma casa sequer construída para as comunidades atingidas pelo rompimento das barragens citadas. E a violação também é da memória, agora marcada pelas imagens de um desastre minerário anunciado há muito na história do Brasil. 

Os povos atingidos têm seus direitos violados antes mesmo de projetos entrarem em seus territórios. Como é o caso da violação do direito à informação, ou à consulta livre, prévia e informada, conforme dispõe a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). E para complementar, as empresas e transnacionais que lucram com as violações de direitos, ainda se promovem com propagandas trazendo uma imagem de sustentáveis, éticas e responsáveis. 

Com a lógica de que o lucro vale mais que a vida, se articulam em redes bem estruturadas para saírem impunes: negam seu envolvimento, evitam a responsabilidade com acordos em tribunais de arbitragem internacional, manipulam pesquisas científicas, disseminam falsas informações, criminalizam e perseguem defensores dos direitos humanos e enfraquecem comunidades.

É preciso frear o poder das corporações e pautar o debate a partir dos direitos humanos e da vida. Trazendo o protagonismo de pessoas trabalhadoras, atingidas pelas violações de direitos e de minorias sociais. E é com essa premissa que o “Seminário Direitos Humanos e Empresas, o Brasil na Frente” apresentou ferramentas, acúmulos e como avançar na luta pela garantia dos direitos humanos. 

Cartilha Popular sobre o PL Nº.572/2022: uma ferramenta educativa na luta pelos direitos humanos 

Organizações civis, sindicais e movimentos sociais realizaram, de 14 a 16 de março, em Brasília, o Seminário Direitos Humanos e Empresas, o Brasil na Frente – Lei Marco no caminho global de mais regras para as empresas. Nos encontros, foi debatida a importância de regulamentar a atuação de empresas nacionais e estrangeiras no Brasil. Assim como a relevância da aprovação do PL 572/22 – Lei Marco Sobre Direitos Humanos e Empresas, projeto de lei de autoria coletiva que tramita atualmente na Câmara dos Deputados. 

A divulgação de informações sobre a realidade dos atingidos deve ser de conhecimento de toda a sociedade. Assim como a compreensão a respeito da forma com que as empresas e transnacionais se organizam para seguirem impunes. Evidenciar estes pontos é imprescindível para assegurar direitos e garantir que a vida venha antes do lucro. Tendo isso em vista, o encerramento do Seminário contou com o lançamento da “Cartilha Popular sobre o PL Nº.572/2022” , uma ferramenta para fortalecer a articulação das lutas. Apresentando os pontos centrais do projeto de lei, o material adentra a arquitetura da impunidade e propõe como é possível se engajar na construção do Projeto de Lei.


CARTILHA POPULAR PL 572

A cartilha explica como surgiu o PL 572/22, que frente a tantas desigualdades vem para criar um marco nacional sobre direitos humanos e empresas e estabelecer diretrizes para a promoção de políticas públicas no tema. O objetivo da lei é garantir a primazia dos direitos humanos sob a lógica dos negócios. Assim como proteger mais adequadamente os direitos fundamentais das comunidades atingidas, o que perpassa prever recursos que garantam os protagonismos destes grupos, superando o desequilíbrio entre os direitos das empresas e dos povos. 

São apontadas ainda porque uma lei marco nacional é necessária, o que há de inovador no PL e que outras iniciativas de normas podem fortalecê-lo, como é o caso da Política Nacional dos Atingidos por Barragem (PNAB), PL nº. 2788/2019. 

Apesar de muitos direitos estarem reconhecidos em outras leis, o texto da PL 572/22 apresenta de forma sistematizada um conjunto de ferramentas tanto para prevenir como para mudar o desfecho de violações. 

O Seminário Direitos Humanos e Empresas, o Brasil na Frente, aconteceu no prédio da CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares), no Núcleo Bandeirante, no Distrito Federal. A atividade foi organizada pela CUT (Central Única dos Trabalhadores), entidade ambientalista Amigas da Terra Brasil,  Fundação Friedrich Ebert (FES – Brasil), Centro de Direitos Humanos e Empresas (Homa),  Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Oxfam Brasil.

Além das entidades promotoras, estiveram presentes no seminário o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida; a deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL/RS), uma das propositoras do PL;  a organização quilombola CONAQ; o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e CPT (Comissão Pastoral da Terra); órgãos judiciários, entre eles o MPF (Ministério Público Federal), o MPT (Ministério Público do Trabalho) e a DPU (Defensoria Pública da União); CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos); a ONG Justiça Global e o veículo de comunicação Repórter Brasil, especializado em denunciar situações de trabalho análogo à escravidão. 

O seminário faz parte da “Campanha Essa Terra Tem Lei – Direitos para os Povos e Obrigações para as Empresas”. Em três dias de atividades e muita articulação das lutas, parlamentares, pesquisadores de universidades e representantes de movimentos sociais e organizações da sociedade civil elaboraram sobre a importância de responsabilizar as empresas por suas violações de direitos humanos.  Foram propostos, ainda, os próximos passos e incidências para a aprovação do PL/572/2, que é o primeiro projeto nacional de obrigações para as transnacionais para complementar o Tratado Vinculante da Organização das Nações Unidas (ONU).  

 

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